Confessionário - genuflexório musical 1
Hoje é um daqueles dias em que me apetece escrever, mas que não sei o tema, menos ainda a forma sob a qual ele irá se vestir.
Diversas ideias pululam na minha mente, mas nenhuma se decide ou consolida. A minha cabeça está demasiado musical hoje… quer dizer, hoje e muitas vezes.
Gosto de música desde pequenino. Sempre que ia à feira com a minha avó ou a minha madrinha, trazia de lá uma cassete pirata (ainda guardo algumas carinhosamente, mesmo que hoje me pareça impossível ouvir aquilo). Não era esquisito e tudo que viesse à rede era peixe. Afinal, era uma criança. Algures numa gaveta de uma escrivaninha em meu quarto, repousam cassetes compradas por cem ou duzentos escudos, numa época em que nem existiam ainda ECU’s, menos ainda Euros.
Cassetes de José Cid, Festival da Canção, Roberto Carlos e por aí… colectâneas tipo Jackpot 84 ou PolyStar… lembro-me de ir ouvindo indiscriminadamente todas essas coisas, antes de começar a trilhar meu próprio caminho. Recordo-me de uma música que me chamou a atenção como até esse dia nenhuma outra tinha chamado. Foi no Natal de 1987, numa colectânea Hit Parade, que tinha sucessos de U2, Suzanne Vega e afins… a música em causa era, contudo, portuguesa e era de uma banda chamada Xutos & Pontapés. Num ano cheio de hit’s lançados para a rádio, como tenham sido “Contentores” e “A Minha Casinha”, a Polygram escolheu o tema “N’América” para integrar a colectânea.
“N’América” está longe de ser uma música festiva ou alegre, e eu apenas tinha 11 anos, mas o certo é que apanhou em cheio, a ponto de saber de cor e salteado todos os versos da letra em três tempos. O tom desnorteado e abatido da música, de alguém que sonha com uma ilusão enlatada de um mundo encantado mesmo ao lado, fez com que germinasse, de facto, um interesse por músicas que não fossem de gosto fácil ou radiofónicas.
E por músicas cantadas em língua portuguesa (o que me faz ter uma genuína aversão a bandas nacionais que cantem em língua que não a nativa).
Musiquinha formatada de rádio nunca me atraiu. Há boas músicas na rádio, mas essas conquistam o seu espaço. A generalidade das músicas que passa na rádio não abre grande espaço à imaginação, são feitas para esse efeito e conseguem, a longo prazo, imbecilizar o ouvinte mais bem intencionado.
Assumo que o que toca na rádio não me preenche. Mais, nem tão pouco me capta o interesse, sequer. Tenho gostos musicais estranhos para a maioria dos seres humanos com os quais convivo porque as pessoas se deixam formatar a nível de gostos, a ponto de não conseguirem se aperceber que nunca foram elas que descobriram nada, antes lhes foram impingidas uma série de produtos enlatados, prontos a serem consumidos sem pestanejar.
Existe algo de grave nisto? Existe. É que, cada um de nós é bem maior do que aquilo que transpira. E, quando não se faz da vida uma busca incessante de si mesmo, acaba-se por cair numa certa frustração interna.
O que tem isto a ver com música? Tudo. Se as pessoas se empenhassem em ir mais a fundo buscar o diferente naquilo que ouvem, descobririam muito mais sobre si próprias, sobre sentimentos, emoções, desejos, vontades e por aí… Mas isso implica o corte de assumir que não se vai ser igual à carneirada… no limite, deixava de haver carneirada…
Como dizia Raul Seixas, “eu prefiro ser essa metamorfose ambulante do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo”.
Outro momento marcante na minha formação musical foi a existência de um programa de rádio chamado Em Português (mais tarde rebaptizado 100%) da autoria de Henrique Amaro. Esse programa, que passava das 23 às 24h na Antena 3 (e teve mais tarde seu horário alterado para as 00h – 01h), e que se destinava a divulgar a nova música feita em Portugal, teve o grande mérito de passar também generosas quantidades de música brasileira. Foi lá que ouvi, pela primeira vez, a música Perfeição, da Legião Urbana, ou Disneylândia dos Titãs. Foi lá que conheci Chico Science & Nação Zumbi, Pato Fu ou mundo livre SA. E ao ouvir essas bandas, com suas estruturas rítmicas próprias e inconfundíveis, frases que me ficaram na cabeça, comecei a definir o meu acervo musical.
Em Agosto de 1994 minha irmã estava de férias no Brasil e lhe encomendei 4 cd’s. Gabriel o Pensador – Gabriel o Pensador (que mais tarde seria editado aqui com sucesso); Titanomaquia – Titãs (que também teve uma diminuta edição em Portugal); Da Lama ao Caos – Chico Science & Nação Zumbi e O Descobrimento do Brasil – Legião Urbana.
Quando ela chegou, esses cd’s mudaram definitivamente e indelevelmente o meu panorama auditivo. Iniciei então uma pesquisa sobre música brasileira que me levou a adquirir centenas de cd’s, a conhecer alguns dos artistas cuja obra aprendi a admirar.
Tenho noção que isso me tornou um ser estranho perante os outros. Quanto eles me falam de uma música qualquer que toca na rádio ou passa em bares e discotecas e eu digo “não conheço”, eles pensam que eu vivo noutro planeta. Tinha um amigo dos tempos da FEP que me dizia que eu era o verdadeiro alternativo, aquele que ouvia músicas que mais ninguém conhecia. E ainda hoje é assim que me sinto bem, não pela necessidade de ser diferente, mas feliz por ter partido em descoberta de mim mesmo e continuamente me encontrar.
Muito ficou por dizer, pelo que voltarei a este tema mais tarde, para completar o que aqui vai. Mas não parto sem deixar uma letra que nunca poderia conhecer se me retivesse ao triste mainstream pop FM que resume o imaginário da generalidade das pessoas a um microcosmo diminuto.
Legião Urbana
Daniel na Cova dos Leões
Aquele gosto amargo do teu corpo
Ficou na minha boca por mais tempo
De amargo então salgado ficou doce,
Assim que o teu cheiro forte e lento
Fez casa nos meus braços e ainda leve
E forte, cego e tenso fez saber
Que ainda era muito e muito pouco.
Faço nosso o meu segredo mais sincero
E desafio o instinto dissonante.
A insegurança não me ataca quando erro
E o teu momento passa a ser o meu instante.
E o teu medo de ter medo de ter medo
Não faz da minha força confusão
Teu corpo é meu espelho e em ti navego
Eu sei que tua correnteza não tem direção.
Mas, tão certo quanto o erro de ser barco
A motor e insistir em usar os remos,
É o mal que a água faz quando se afoga
E o salva-vidas não está lá porque não vemos
Um bem-haja a todos vocês.
(Escrito ao som de Ópera do Malandro (1977) – Chico Buarque e Acústico MTV (1997) – Titãs)
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