Stress, Depressão & Síndrome de Pânico

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sou um pardal ateu e é isso...

quinta-feira, maio 14, 2009

Frio nos Pés

Tanto frio nos pés… o frio que sobe pelos tornozelos, trepa pelos gémeos, chega aos joelhos, percorre as coxas e espraia-se tronco acima… mas é curioso como habitualmente os genitais escapam à sensação de frio.


O frio… tanto se sente nos ossos, como nos olhos. Tanto se sente na pele, como no espírito. O frio não é matéria, não é tangível, não é palpável. Mas sente-se. Logo deve existir. Os meus pés acham que sim. Que o frio existe. Então, onde está? Onde está o frio? Eu não vejo o frio. Observo os seus efeitos, observo os carros, a erva gelada pela manhã, observo as grossas roupas que cobrem nossos corpos, observo o fumo que sai das lareiras das casas, observo as luvas nas mãos, observo os tremores de quem espera um autocarro fora de horário numa paragem, observo a forma como ambas as mãos parecem acariciar a chávena de café que fumega, observo a pele seca da miúda que está ao lado na confeitaria, observo os vidros embaciados, observo o toque gelado de um apertar de mãos.



Mas não vejo o frio.



Haverá frio dentro de nós? De tanto frio que tantas vezes aos outros damos, quanto não será proveniente dos nossos medos, dos nossos anseios, das dúvidas, hesitações, de angústias e remorsos? Quanto frio não encobre o orgulho numa fina capa cinzenta, para que não se observe o vermelho magoado lá dentro? Quanto frio não surge para disfarçar a timidez, para esconder uma paixão que brota, cuja nascente se tenta desesperadamente tapar e que apenas conseguimos fazer que comece a alterar o seu curso.



Racionais? Sim, claro. Mas frios… existe alguma piada num abraço frio? Existe algum carinho num beijo frio? Existe alguma beleza num olhar frio?


Existe frio? Sei lá… mas se gelo existe para ser quebrado, arregacemos as mãos e saquemos da picareta. Aquecida no fogo. Não há frio que não derreta.



E, se acaso em teu leito, sentires se aproximar o sono frio da morte, recorda-te que “A escuridão é pior que essa luz cinza, mas estamos vivos ainda” (Legião Urbana – Natália).



Desconheço o poder das palavras e seus efeitos, mas o certo é que passou o frio nos pés.

quarta-feira, maio 13, 2009

Poemas

Poemas e dilemas, poemas e problemas
Poemas e sistemas, temas são poemas.
Em poemas te elevas
E te relevas
Em poemas te revelas e te dilatas
Em poemas te maltratas
Sob a égide da cupidez
Sob o manto da acidez
Em poemas serás virgem
Em poemas serás gente
Em poemas te atingem
E te esculpem a mente
Serás inteligente?
Farás frente a alguém demente que ataque de repente?
Abandonarás a frigidez do teu palato?
Abraçarás a verve de um novo trato?
E quando te pintam o retrato, qual estrela de cinema,
E te revolvem os cabelos,
E retocam tua cálida pele morena,
Ainda assim serás poema?
Ou serás a esfinge dogmática,
A redutora maresia estática,
A pena que adorna a caligrafia,
Que te angustia,
E o perverso pensamento embacia?
Poema, ente masculino,
Tanto retratas o feminino
E rejeitas teu estulto destino

A Carteira e o Lenço

E ela estava sentada, perto de si estava a carteira e um lenço. Não era uma tarde fria nem quente, era uma tarde insípida e incipiente. Olhava para a fina espuma do mar. mas nem tinha a certeza de a estar a ver.

Estava sentada. Pensava. Pensava no que evitava pensar. O vento trazia-lhe uma amarga sensação, como se lhe açoitasse o rosto e a alma em simultâneo. Não eram lembranças, eram dúvidas, era o não saber se se quer ser, se as emoções insistem em permanecer.

Olhava para a espuma, olhava para o planar daquelas estranhas aves que voavam junto à água salgada.

Continuava a pensar no que evitava pensar, e pensava que devia evitar pensar.

Talvez fosse pelo mar, talvez fosse sorte e azar, talvez fosse do ar que estava a respirar, talvez apenas lhe sorvesse pensar, mas tudo ia e voltava. Longe de serem as ondas do mar, era o pensamento que se atrevia a pensar.

Como as ondas do mar, para a frente, para trás… seria sempre assim?

Seria ela sempre assim? Ou seria ela, sequer, assim?

Estava sentada, perto de si a certeira e um lenço. O horizonte parecia tão longínquo, tão ténue… a linha do pensamento confundia-se e perdia-se. Divagava ao Sol, enquanto o Sol divagava no céu.

Sabia que hesitava, e que a prudência lhe era natural. Hesitaria o Sol? Hesitaria o Mar? As suas emoções hesitavam… pareciam dormitar… ou seria ela quem dormitava e faria hesitar as emoções?

Algo doía. Era estranho, era como se algo bom doesse. Perguntava-se se o que é bom pode doer. Ou se a dor pode ser boa. Onde guardar a dor? Por melhor que seja o invólucro, por mais seguro que seja o esconderijo, ela foge. E volta. Volta a dor, volta a vontade de doer. De doer uma dor boa.

Era como se a noite se fundisse com o dia, como se os olhos estivessem vendados, e a claridade lhe batesse no rosto. O medo que a solidão estivesse à espreita assustava-a. O medo de ser ela a chamar a solidão petrificava-a. Sabia sentir calor, às vezes achava que o seu calor se escondia.

Desconfiava. Desconfiava da vida, do vento, de si. A carteira continuava ao lado. O lenço voara. O lenço…

À noite, na cama, sentia falta de um afago no rosto, sentia a vontade de um abraço. Sentia a revolta do calor. À noite, na cama, sentia visitar-se a si mesma. Quando seria alguém a visitá-la? Quando permitiria que alguém a visitasse? O medo da dor, de ficar igual ao mar, de as pequenas ondas se transformarem em gigantes vagas, o medo de se extravasarem e a extravasarem, o medo e a vontade. Um dia, quem sabe? Uma outra noite, quem sabe?

A carteira estava pousada na mesa. A luz do quarto estava apagada. A temperatura tépida. Lá fora, o frio, o vento. Algures, o mar. Em si, o sono. Em seus sonhos, a fúria dos elementos, elementos que se abraçavam e a abraçavam. Na rua, um lenço esvoaçava e acompanhava o vento.

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sábado, abril 21, 2007

Banalidades e pequenos - almoços

A passada semana fui tomar o pequeno – almoço com um amigo meu, que me falou de um pequeno artigo que lera numa revista de distribuição gratuita. Em termos resumidos, um conferencista apresentava-se com um boião, no qual colocou pedras. Encheu o boião, o mais que lhe foi possível, com pedras e perguntou à audiência se o boião estava cheio, que prontamente lhe respondeu que sim. Então, ele colocou gravilha no boião, nos espaços livres que as pedras deixaram. E voltou a perguntar à audiência se o boião estava cheio. A audiência disse que agora sim, estava cheio. Então, ele colocou areia no boião, que preencheu os espaços que sobravam da gravilha e das pedras. Repetiu a questão. A audiência repetiu a resposta. Então, ele colocou água no boião e disse que agora sim, o boião estava cheio.

É então que ele questiona a audiência sobre qual o significado do que ele acabara de fazer. Uma pessoa arriscou responder: não interessa o quanto a nossa agenda esteja preenchida, encontramos sempre tempo para mais um compromisso. Ao que o conferencista responde: Errado!

O que eu fiz apenas foi possível porque coloquei as coisas por esta ordem. Primeiro as pedras maiores, depois as pequenas, depois a areia e, por fim, a água. O mesmo deve acontecer nas nossas vidas. Primeiro o que é, realmente, importante: a pessoa amada, a família, os amigos, os sonhos, os desejos e a saúde. Depois, e apenas depois, tudo o resto.

O meu amigo sentiu-se um pouco reconfortado ao ler esta história, pois partilha do seu ponto de vista. Quem me conhece sabe que eu também, contudo, queria realçar um detalhe que pode passar despercebido numa primeira abordagem. E que é a resposta que o elemento da audiência dá ao conferencista. “Não interessa o quanto a nossa agenda esteja preenchida, encontramos sempre tempo para mais um compromisso”. Essa frase, que se encontra na história como claro contraponto ao que se segue, tem um significado ainda mais profundo: é assim que muitos de nós encaram a vida hoje. Ou seja, de forma completamente inversa àquela que o conferencista pretende demonstrar ser a correcta.

Essa forma de viver, amplamente difundida e prenhe, teve grande impulso com a Revolução Industrial e sistemas comunistas e capitalistas se aproveitaram dela para se edificarem e alimentarem. A suprema ideia de o trabalho como realização superior serve às mil maravilhas para que empresas e estados se alimentem, através de uma moderna forma de escravização, que consegue convencer as pessoas que o estão a fazer de forma voluntária e porque isso lhes satisfaz o seu interior. Orwell e Huxley juntos não fariam melhor. O endeusamento do ser individual através do trabalho, criando a suprema patranha redutora que somos o que conseguimos alcançar na nossa actividade profissional, não importa os meios, importa a fama e o sucesso, importa o dinheiro e o prestígio.

Mas, contestar a ideia dominante é romantismo… é falta de ambição, é cinzentismo. Não pode ser uma forma alternativa de encarar a vida; não, não pode ser nada que possa minar os alicerces do sistema, ainda que seja o sistema que esteja a minar os nossos alicerces. Daí a busca desproporcionada do ser humano pelos bens materiais, tentando compensar e preencher o vazio interior que dele se apoderou nesta nossa contemporaneidade. Quanto à dimensão desse vazio, falaremos em outra oportunidade.

quinta-feira, março 22, 2007

Ponto de Fuga

Estavas distante nesse dia, eu recordo-me. Foi algo no teu olhar que, primeiramente, me alertou. Este vagueava, e, por vezes, se fixava num ponto algures longe do meu. Não fiquei indiferente a tal, apenas preocupado com a causa de tal comportamento. Tal não era normal em ti, não te conhecia esse hábito, e nem sequer me parecia que o fizesses por algo que te deixasse feliz ou, pelo menos, em repouso interior.

Estavas distante, estarias noutro lugar qualquer, com qualquer outra pessoa, ou até mesmo com a tua própria pessoa. Não estavas comigo, apesar de estares ali, apesar de eu estar ali, junto ao teu ali. Estavas com os teus próprios pensamentos, e estes formavam uma redoma que começava a inviabilizar a nossa comunicação. Não, definitivamente este não era o teu comportamento, era demasiado contrastante com todas as tuas atitudes que eu te conhecia e que antecediam a desse dia. Antecediam sem preceder.

De repente a mão tremeu, a tua mão tremeu, o que também não era comum, e ficou patente que os teus pensamentos se sobressaltaram, talvez tivessem visto um vulto furtivo ao virar de uma esquina, ou imerso nas sombras, uma penumbra flutuante que te assombrasse. A tua mão tremeu, o teu olhar se perdeu, se perdeu numa viela suja, num buraco na sarjeta, num ponto de fuga qualquer impossível de discernir no meio do tanto que era o gigantesco nada para o qual olhavas.

A tua mão tremeu, e a tua garganta oscilou, não, não eram soluços, não eram espasmos, era apenas um engolir em seco, engolir o silêncio do teu olhar, engolir qualquer segredo só teu, para que o digerisses e ele te alimentasse, para que ele passasse por entre os teus pulmões, e sentisse o teu respirar, o batimento do teu peito, mas, teria ele sentido esse batimento, se tu ali não estavas?

Do nada, teus lábios se abriram e pronunciaram o meu nome. Eu ouvi, era o meu nome, o meu nome nos teus lábios, na tua boca, o meu nome a sair de ti, quando tu ali não estavas, quando tu tinhas acabado de engolir o teu segredo só teu, era o meu nome que saía de ti, sem talvez nunca ter entrado, sem talvez nunca ter estado, o meu nome que provinha das tuas cordas vocais, que pareciam se juntar ao teu olhar na busca incessante do ponto de fuga; o meu nome que chegava até mim, numa eternidade momentânea.

De seguida, veio a explosão, veio o ribombar, veio o turbilhão, o tumulto que de ti emergiu, e que não é possível de lembrar, nem de esquecer, como algo que se criou e nunca existiu, veio tudo o que finalmente saiu, como se fosse extirpado, como se fosse a ferros, o teu olhar longe, a tua mão trémula, o teu peito a fervilhar de dor, o ponto de fuga sempre presente, mas agora estavas ali, estavas ali e dizias o meu nome, e dizias tudo o resto também, dizias o que tinhas, o que te tornava ausente, e em breve te tornaria definitivamente ausente, o que te feria e em breve te faria ir fazer companhia ao teu olhar, talvez nesse ponto de fuga que encaravas sem ver.

Veio o segredo, o segredo que tinhas engolido, num vómito frenético, um vómito em que a bílis era completamente espalhada sobre mim, e me sujava a roupa, me sujava o rosto, me sujava a mente e a alma, se entranhava em mim e me fazia olhar também para um ponto de fuga, que contudo, não era o teu. Veio o segredo, e o cheiro do teu segredo me fez ficar ausente de mim mesmo, me fez tremer a mão também, me fez ver o que não mais tornaria a ver.

Não pensei em justiça ou injustiça, nem sequer me revoltei, não tinha o direito de me revoltar, ele era todo teu, era o direito que estava a ribombar no teu peito, era o direito que te assistia, e que te fazia vomitar naquela explosão ácida que me atingiu, mas que era a ti que queimava por dentro.

Ao longe, vi uma lágrima. Vi-a sair a custo de ti, como se tivesse que abrir o caminho com toda a força que tinha, como se o saco lacrimal possuísse uma barreira invisível que a encarcerasse e a levasse a tentar ganhar fôlego e força para se evadir de ti. A lágrima foi se aproximando de mim, e trouxe companhia, todas as suas irmãs que sabiam do teu segredo, e que sabiam porque razão o tinhas vomitado em cima de mim, e que queriam estar comigo, talvez para acompanhar esse vómito, talvez para me susterem, talvez para encontrarem o meu ombro, como, afinal, acabaram por encontrar.

De repente, deixei de ver o teu olhar distante, senti a proximidade do vómito e da lágrima e apenas vislumbrava folículos e ouvia o meu nome abaixo do meu lóbulo, e ouvia o teu segredo gritar, e ouvia o vento a levar tudo embora, para bem longe e para bem dentro de mim. Eu ia carregar o teu vómito, o teu segredo e a tua lágrima. Eu ia carregar a tua dor, e ia doer em mim também, até porque eu não podia carregar o teu olhar, nem o ponto de fuga por ti encontrar. Senti o meu peito quente por dentro e por fora, senti um ofegar junto dele, e senti que, por instantes, estavas ali, não te quedavas só.

Falaste muito; do quê, apenas escassas lembranças. Porque quis esquecer, porque preferi recordar o teu rosto a olhar para longe, porque preferi lembrar o calor da tua lágrima, porque quis que vivesses em mim como antes te conhecera. Falaste muito, e muito contaste, e muito te esvaíste, e depois nos despedimos, e eu levei o teu segredo, foi comigo, e te deixei um sorriso, porque era um sorriso o que eu tinha para te dar, e foi um sorriso que a retina do teu olhar agarrou com as duas mãos. E foi um sorriso que os teus lábios conseguiram articular, antes de o teu olhar se virar para um outro lugar.

Voltei a ver-te uma outra vez. O teu corpo, deitado, exalava o estranho odor da ausência, uma ausência que, com antecedência, se anunciara eterna. Ao teu redor estava gente, alguma, gente que eu nunca vira, e alguma, pouca, que eu já conhecia. Os seus semblantes carregados contrastavam com a paz que tu emanavas, desconhecendo que já não mais vomitavas segredos, nem tua mão se atacava de tremuras. As tuas pálpebras estavam cerradas, não conseguia ver o teu olhar, mas adivinhava que, com elevada probabilidade, ele finalmente tivesse descoberto o ponto de fuga que procurara aquando do nosso anterior encontro, e que nele se tivesse entrelaçado.

Saí, olhei ao longe, e vi o teu sorriso. Ainda o vejo, de vez em quando. E é então que a lágrima que de ti saiu e de mim fez seu novo lar, abandona o calor que lhe ofereci e vem ver para onde estou a olhar, para com o teu sorriso se encontrar, nesse ponto de fuga em que não existem vómitos nem segredos.

segunda-feira, março 12, 2007

Admirável Mundo Novo (o Sr Huxley que me perdoe a pilhagem)

Não eras forte nem particularmente bonito. Não tinhas uma silhueta invejável nem sequer aquele charme que caracteriza os sedutores. Não tinhas pretensões de seres o que não eras nem aquelas ambições que tanto fazem as delícias das mulheres. Não te pelavas todo por um bom carro, não te importavas com uma boa casa e dispensavas bem um restaurante bem decorado, pois o que te preenchia era boa comida.

Não tinhas uma única característica que me agradasse, que combinasse comigo, que eu te dissesse que era afim a mim. No entanto, por artes que não tenho o condão de explicar, eras especial. Eras especial e algo gravaste em mim em algum lugar que não consigo encontrar. Às vezes, parece que não estás lá, parece que nunca estiveste, mas há momentos em que me apercebo que a tua presença é uma constante, como se eu nunca estivesse só.
Nessas alturas em que te revelas, fazes-me recordar momentos que eu nem sonhava que haviam existido, fazes-me lembrar de eu e tu deitados sobre o mesmo leito, por vezes abraçados, como se o mundo se fundisse em nós. Como quando me revolvias o cabelo ou eu te tocava no rosto.

Partiste e eu julguei que era apenas um arrufo. Mas havias partido de vez. A início, o alívio, depois uma estranha indefinição, e por fim, a tua imagem, de tantas vezes me teres feito chorar e de tantas vezes te ter eu feito sofrer. Partiste, e eu pensei que apenas foras um raio de luz, que apenas vieras dar um vislumbre de ti. Partiste e avisaste da tua ida. Mas eu não quis ouvir, eu nunca quis ouvir. Eu pensei sempre que ficavas, que não te desligarias de mim nunca, porque eu era especial. Nem dei conta de que tu também o eras, nem dei conta de me perder em mim mesma. Defini as minhas verdades e a elas me agarrei até ao fim, até ao último instante, aquele em que me deixaste só, sem eu entender bem o que estava a acontecer.

Eu estava imersa em mim e não medi o impacto do teu acto. Preocupara-me tanto em te submeter a mim, em querer que me amasses como eu sou, que nem me preocupei em te amar como tu és. Tanto quis ter de ti, que, por tão diferente seres do que sempre sonhara para mim, nem te quis dar o que de mim querias receber. Sempre achei fazer o certo e, talvez por isso, te ouvisse, sim, ouvia-te, mas sem te entender. O mundo parecia uma massa muito mais densa quando falavas, e eu não queria a densidade, eu queria que deixasses os problemas do mundo de lado e olhasses para mim, para que visses como eu sou bonita, quando eu própria apenas te falava do meu mundo, que eu entendia ser o ideal, e que nunca abandonaria, e para ti não olhava. Ou olhava sem te ver.

Partiste e a tua partida foi o que mais me marcou. Apenas depois de ires, muito depois de ires, comecei a ouvir a tua voz, a me recordar de tuas palavras. Vivi muitos momentos com a cabeça em ti, passei por situações em que sentia que me estavas a observar, como se soubesses que um dia me ocorreriam. Podias estar longe, mas quando, por vezes, tu me abandonavas, como se tivesses desaparecido de mim, eu encontrava-te num canto meu, para o qual eu nunca tivera a coragem de olhar antes.

Nunca gostei de admitir os meus erros, reconheço, sou orgulhosa, gosto de ultrapassar as situações sem dar parte de fraca, porque sou insegura e raios te partam se tu não vislumbraste sempre a minha insegurança. Tive, tive medo. Muito medo. Ou julgas que era fácil aceitar algo como tu, que eu nunca entendi bem? E, além de não entender, diminuía.

Durante anos pensei que partilhar era tem alguém ao lado com quem falar sobre os nossos sucessos e que nos suportaria nas alturas más. Ensinaste-me, ainda que de forma enviesada, que partilhar é, mais que tudo, o que podemos fazer pelos que estão ao nosso lado. Tu querias mostrar que partilhar é dar um abraço a quem achava que partilhar era dizer que tinha sido promovida ou cujo trabalho tinha sido reconhecido. Eu própria queria que tu fosses reconhecido, porque te achava com valor, mas nunca parei para ver de onde era originário o valor que eu pensava tu teres. Tentaste partilhar comigo a tua profundidade, eu apenas queria a superfície. Terei feito sempre isso sem me dar conta?

Desconheço tudo sobre ti. Onde te encontras, o que fazes. Quem és. Mas sinto falta do teu ar desmazelado, do teu ombro nos momentos difíceis, da tua lucidez quando tudo se aparenta a um jardim florido, da tua amargura crítica perante o que nos rodeia, do teu companheirismo, e do teu calor. Sinto falta das tuas pernas cruzadas nas minhas. Sinto falta de acordar ao teu lado numa cama apertada e não querer ir trabalhar, querer ficar assim, apenas, sem dizer palavra, como tão poucas vezes ficamos.

Tenho muito, hoje. Tenho. Mas não te tenho a ti, de quem gostei sem querer ter. Gostaria, pelo menos, de te rever, que tomássemos um chá, ou fossemos jantar. Gostaria de, ainda que por umas horas, sentir que, afinal, não foste embora, que todo este tempo que passou, na verdade, não passou, foi apenas uma noite mal dormida, um estranho sonho que se apoderou de nós, mas nos largou no despertar de uma manhã primaveril, morna e aromática.

E que, ao acordar, estavas ao meu lado e eu te abraçava enquanto dormias. Para que não fugisses, para que não saísses para ir trabalhar e que, por um dia, eu me entregasse em teus braços e me perdesse de mim, para que eu soubesse, por uma vez, o que era ser tua. Ser tua de verdade.

segunda-feira, novembro 06, 2006

Dia Da Criação - Vinicius de Moraes

I

Hoje é sábado, amanhã é domingo
A vida vem em ondas, como o mar
Os bondes andam em cima dos trilhos
E Nosso Senhor Jesus Cristo morreu na Cruz para nos salvar.

Hoje é sábado, amanhã é domingo
Não há nada como o tempo para passar
Foi muita bondade de Nosso Senhor Jesus Cristo
Mas por via das dúvidas livrai-nos meu Deus de todo mal.

Hoje é sábado, amanhã é domingo
Amanhã não gosta de ver ninguém bem
Hoje é que é o dia do presente
O dia é sábado.

Impossível fugir a essa dura realidade
Neste momento todos os bares estão repletos de homens vazios
Todos os namorados estão de mãos entrelaçadas
Todos os maridos estão funcionando regularmente
Todas as mulheres estão atentas
Porque hoje é sábado.

II

Neste momento há um casamento
Porque hoje é sábado.
Há um divórcio e um violamento
Porque hoje é sábado.
Há um homem rico que se mata
Porque hoje é sábado.
Há um incesto e uma regata
Porque hoje é sábado.
Há um espetáculo de gala
Porque hoje é sábado.
Há uma mulher que apanha e cala
Porque hoje é sábado.
Há um renovar-se de esperanças
Porque hoje é sábado.
Há uma profunda discordância
Porque hoje é sábado.
Há um sedutor que tomba morto
Porque hoje é sábado.
Há um grande espírito de porco
Porque hoje é sábado.
Há uma mulher que vira homem
Porque hoje é sábado.
Há criancinhas que não comem
Porque hoje é sábado.
Há um piquenique de políticos
Porque hoje é sábado.
Há um grande acréscimo de sífilis
Porque hoje é sábado.
Há um ariano e uma mulata
Porque hoje é sábado.
Há um tensão inusitada
Porque hoje é sábado.
Há adolescências seminuas
Porque hoje é sábado.
Há um vampiro pelas ruas
Porque hoje é sábado.
Há um grande aumento no consumo
Porque hoje é sábado.
Há um noivo louco de ciúmes
Porque hoje é sábado.
Há um garden-party na cadeia
Porque hoje é sábado.
Há uma impassível lua cheia
Porque hoje é sábado.
Há damas de todas as classes
Porque hoje é sábado.
Umas difíceis, outras fáceis
Porque hoje é sábado.
Há um beber e um dar sem conta
Porque hoje é sábado.
Há uma infeliz que vai de tonta
Porque hoje é sábado.
Há um padre passeando à paisana
Porque hoje é sábado.
Há um frenesi de dar banana
Porque hoje é sábado.
Há a sensação angustiante
Porque hoje é sábado.
De uma mulher dentro de um homem
Porque hoje é sábado.
Há a comemoração fantástica
Porque hoje é sábado.
Da primeira cirurgia plástica
Porque hoje é sábado.
E dando os trâmites por findos
Porque hoje é sábado.
Há a perspectiva do domingo
Porque hoje é sábado.

III

Por todas essas razões deverias ter sido riscado do Livro das Origens, ó Sexto Dia da Criação.
De fato, depois da Ouverture do Fiat e da divisão de luzes e trevas
E depois, da separação das águas, e depois, da fecundação da terra
E depois, da gênese dos peixes e das aves e dos animais da terra
Melhor fora que o Senhor das Esferas tivesse descansado.
Na verdade, o homem não era necessário
Nem tu, mulher, ser vegetal dona do abismo, que queres como as plantas, imovelmente e nunca saciada
Tu que carregas no meio de ti o vórtice supremo da paixão.
Mal procedeu o Senhor em não descansar durante os dois últimos dias
Trinta séculos lutou a humanidade pela semana inglesa
Descansasse o Senhor e simplesmente não existiríamos
Seríamos talvez pólos infinitamente pequenos de partículas cósmicas em queda invisível na terra.
Não viveríamos da degola dos animais e da asfixia dos peixes
Não seríamos paridos em dor nem suaríamos o pão nosso de cada dia
Não sofreríamos males de amor nem desejaríamos a mulher do próximo
Não teríamos escola, serviço militar, casamento civil, imposto sobre a renda e missa de sétimo dia,
Seria a indizível beleza e harmonia do plano verde das terras e das águas em núpcias
A paz e o poder maior das plantas e dos astros em colóquio
A pureza maior do instinto dos peixes, das aves e dos animais em cópula.
Ao revés, precisamos ser lógicos, freqüentemente dogmáticos
Precisamos encarar o problema das colocações morais e estéticas
Ser sociais, cultivar hábitos, rir sem vontade e até praticar amor sem vontade
Tudo isso porque o Senhor cismou em não descansar no Sexto Dia e sim no Sétimo
E para não ficar com as vastas mãos abanando
Resolveu fazer o homem à sua imagem e semelhança
Possivelmente, isto é, muito provavelmente
Porque era sábado.

sexta-feira, novembro 03, 2006

Dois Livros

Desta vez, gostaria de deixar aqui um comentário a dois livros: “O Passo Seguinte”, de Fernando Morgado de Andrade (2005), e “O Príncipe e o Mago”, de Renato Morais (2003).

Não me alongarei demasiadamente. Deter-me-ei no primeiro, por ora. É um livro que retrata a vida de um sujeito na cidade de Lisboa, passada entre a ditadura e a democracia, um livro que foge à óbvia e linear análise política, antes se transforma num desabafo, numa assumpção de contradições, contradições de sentimentos e de posturas, alteração de ideias e ideais ao longo da vida, um livro que assenta nas pequenas coisas do dia a dia, que vai revelando diversas facetas daquilo que é a personalidade do personagem principal, as suas virtudes, os seus defeitos, em muitas circunstâncias o seu egoísmo, mesmo na forma como leva a relação com a pessoa que ama. Pois, é verdade, eu esquecia-me de dizer que, acima de tudo, é um livro centrado (ainda que não o pareça à primeira vista) na pessoa amada pelo personagem, no sentimento e no desenrolar da relação, nas coisas comezinhas, mas necessárias à vida de cada casal. É um livro que se lê sempre à espera do passo seguinte, e em que o passo seguinte nem sempre é o que se espera.

Para quem gosta de romances cor-de-rosa, este não é o livro ideal para isso. Existe romance, sem dúvida, mas o tom varia consoante o momento. Realça a profusão de sentimentos do principal personagem, a pequenez de muitos dos nossos actos diários, o facto de, muitas vezes, não serem actos genuínos, mas actos que efectuamos deliberadamente com o fito de daí obter algum proveito. É a tal diferença entre se obter reconhecimento ou procurá-lo. Parece o mesmo, mas não é. Aliás, a contínua procura de reconhecimento é um sinal de algum problema de índole psíquica, eventualmente de um certo mau estar consigo mesmo e com os outros, uma necessidade de tentar sempre ser algo reconhecido pelos outros, é sinal de fortes fragilidades.

Ora, neste romance, tal aparece de forma mais subtil ou mais gritante, consoante os momentos. A principal personagem anda sempre em busca de reconhecimento, quer pelo outro sexo, quer a nível laboral, tentando assim remendar as suas fragilidades, em busca sempre do passo seguinte, como se houvesse sempre um passo a dar. Respira-se a insatisfação permanente, tão característica do nosso ser nestes tempos contemporâneos, como se fôssemos obrigados a percorrer sempre uma trilha de mais e mais e mais.
A lucidez desta obra é bem patente no seu desfecho, na implícita conclusão de se dar demasiado valor na vida a coisas que pouco valor têm, da hipocrisia da vida, sobretudo da vida laboral, da desumanidade em que caminhamos e que, a maioria das vezes, apenas nos damos conta perto do final da caminhada, quando já nos faltam as forças e sobeja a fome e a sede. Nem de propósito, a capa do livro traz-nos um relógio. Mais que um passo a dar ou dado, para mim simboliza o tempo vivido e o tempo desperdiçado pelo protagonista.
De qualquer forma, e independentemente de opiniões discordantes, é um livro a ler, sem sombra de dúvida.


Já “O Príncipe e o Mago” é, apesar de mais curta em extensão, uma obra mais profunda. Sob a máscara de um conto passado em terras moldadas pela cultura e religião árabe, o autor relata o percurso de uma pessoa (um príncipe) em busca do seu auto-conhecimento, que, como é natural, nem sempre se revela fácil.
É patente que o autor não acredita em facilitismos nesse caminho; pelo contrário, é um caminho que pode ser doloroso, ir ao fundo de nós mesmos, saber o que somos, o que fazemos, e porque fazemos o que fazemos. Sujeitos a admirações, genuínas umas, forjadas uma grande parte, a invejas, ódios, cobiças, estando envolvidos pelo materialismo (dialéctico e não só), tornamo-nos muitas vezes doentes. E o foco da nossa doença vem de dentro, e não de fora. Rejeitando misticismos baratos (tão em voga nos nossos dias, desde o relativamente inócuo yoga até espiritismos, limpeza de energias – com que aspirador, pergunto eu), o autor frisa a importância do auto-conhecimento. O auto-conhecimento como fonte de um bem-estar natural e saudável, por oposição ao bem-estar incutido externamente.

Para Renato Morais, esse é um caminho essencialmente efectuado em solidão. E aqui, não estamos em acordo, ou não fosse Renato um amante da Psicologia, e eu com algumas noções elementares de Sociologia. O conhecimento de nós mesmos apenas tem relevância na medida em que somos um animal social (como os outros animais), e em que isso afecta as nossas relações com os objectos exteriores. Se esse caminho fosse efectuado em solidão, o ser humano poderia viver completamente só. Nem esse é o fito do ser humano, nem essa é a sua necessidade. Agora, é facto que o ser humano (como os outros animais) tem momentos com necessidade de isolamento, de auto-análise, mas a auto-análise nem sempre é suficiente, se o fosse, não seriam necessários amigos (numa esfera), psicólogos ou psicanalistas (em outra esfera). O caminho do nosso auto-conhecimento não tem de ser um caminho de solidão. Pode ser, o que é diferente. Mas não o é necessariamente.

Mais a mais, existem reflexões em que ouvir uma opinião externa, desde que genuína (e ao longo dos anos, vamos aprendendo quais as opiniões genuínas, quem é que efectivamente nos diz o que pensa ou acha, e aqueles que nos dizem apenas o que queremos ouvir), se torna fundamental para que nos apercebamos de coisas que, sozinhos, dificilmente ou mesmo nunca, seríamos levados a perceber.

Seja de que forma for, estou em completo acordo com a necessidade de ouvirmos o nosso interior, de lermos o nosso inconsciente, de assumirmos que amplas vezes, o papel que nos atribuíram, ou que nós atribuímos a nós mesmos, não se encaixa na nossa id, não é o nosso “eu”, é algo que depende e se amarra em constrangimentos sociais e pessoais, algo que idealizamos ou que nos traçaram (e aí, a escolha de um personagem príncipe é de uma lucidez e genialidade extraordinárias). E, um enorme mérito do livro, é o de não entender que essas amarras são eternas, mas que cabe à própria pessoa soltar-se delas. O caminho efectuado pelo príncipe vai em completo contra-ciclo em relação aos padrões “de sucesso” da nossa sociedade atomizada e anómica, mas é de uma coragem extrema (mais ainda por ser um príncipe).


A ambos os autores, desconhecidos do grande público, tão ávido em ler porcarias, endereço as maiores felicidades, além de um obrigado por partilharem connosco, os que lemos os vossos livros, a vossa honestidade intelectual e, com isso, me terem feito reflectir e ter sentido prazer em ler ambos os livros.
E espero que, mesmo discordando, entendam a franqueza das minhas opiniões.