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sou um pardal ateu e é isso...

sexta-feira, novembro 03, 2006

Dois Livros

Desta vez, gostaria de deixar aqui um comentário a dois livros: “O Passo Seguinte”, de Fernando Morgado de Andrade (2005), e “O Príncipe e o Mago”, de Renato Morais (2003).

Não me alongarei demasiadamente. Deter-me-ei no primeiro, por ora. É um livro que retrata a vida de um sujeito na cidade de Lisboa, passada entre a ditadura e a democracia, um livro que foge à óbvia e linear análise política, antes se transforma num desabafo, numa assumpção de contradições, contradições de sentimentos e de posturas, alteração de ideias e ideais ao longo da vida, um livro que assenta nas pequenas coisas do dia a dia, que vai revelando diversas facetas daquilo que é a personalidade do personagem principal, as suas virtudes, os seus defeitos, em muitas circunstâncias o seu egoísmo, mesmo na forma como leva a relação com a pessoa que ama. Pois, é verdade, eu esquecia-me de dizer que, acima de tudo, é um livro centrado (ainda que não o pareça à primeira vista) na pessoa amada pelo personagem, no sentimento e no desenrolar da relação, nas coisas comezinhas, mas necessárias à vida de cada casal. É um livro que se lê sempre à espera do passo seguinte, e em que o passo seguinte nem sempre é o que se espera.

Para quem gosta de romances cor-de-rosa, este não é o livro ideal para isso. Existe romance, sem dúvida, mas o tom varia consoante o momento. Realça a profusão de sentimentos do principal personagem, a pequenez de muitos dos nossos actos diários, o facto de, muitas vezes, não serem actos genuínos, mas actos que efectuamos deliberadamente com o fito de daí obter algum proveito. É a tal diferença entre se obter reconhecimento ou procurá-lo. Parece o mesmo, mas não é. Aliás, a contínua procura de reconhecimento é um sinal de algum problema de índole psíquica, eventualmente de um certo mau estar consigo mesmo e com os outros, uma necessidade de tentar sempre ser algo reconhecido pelos outros, é sinal de fortes fragilidades.

Ora, neste romance, tal aparece de forma mais subtil ou mais gritante, consoante os momentos. A principal personagem anda sempre em busca de reconhecimento, quer pelo outro sexo, quer a nível laboral, tentando assim remendar as suas fragilidades, em busca sempre do passo seguinte, como se houvesse sempre um passo a dar. Respira-se a insatisfação permanente, tão característica do nosso ser nestes tempos contemporâneos, como se fôssemos obrigados a percorrer sempre uma trilha de mais e mais e mais.
A lucidez desta obra é bem patente no seu desfecho, na implícita conclusão de se dar demasiado valor na vida a coisas que pouco valor têm, da hipocrisia da vida, sobretudo da vida laboral, da desumanidade em que caminhamos e que, a maioria das vezes, apenas nos damos conta perto do final da caminhada, quando já nos faltam as forças e sobeja a fome e a sede. Nem de propósito, a capa do livro traz-nos um relógio. Mais que um passo a dar ou dado, para mim simboliza o tempo vivido e o tempo desperdiçado pelo protagonista.
De qualquer forma, e independentemente de opiniões discordantes, é um livro a ler, sem sombra de dúvida.


Já “O Príncipe e o Mago” é, apesar de mais curta em extensão, uma obra mais profunda. Sob a máscara de um conto passado em terras moldadas pela cultura e religião árabe, o autor relata o percurso de uma pessoa (um príncipe) em busca do seu auto-conhecimento, que, como é natural, nem sempre se revela fácil.
É patente que o autor não acredita em facilitismos nesse caminho; pelo contrário, é um caminho que pode ser doloroso, ir ao fundo de nós mesmos, saber o que somos, o que fazemos, e porque fazemos o que fazemos. Sujeitos a admirações, genuínas umas, forjadas uma grande parte, a invejas, ódios, cobiças, estando envolvidos pelo materialismo (dialéctico e não só), tornamo-nos muitas vezes doentes. E o foco da nossa doença vem de dentro, e não de fora. Rejeitando misticismos baratos (tão em voga nos nossos dias, desde o relativamente inócuo yoga até espiritismos, limpeza de energias – com que aspirador, pergunto eu), o autor frisa a importância do auto-conhecimento. O auto-conhecimento como fonte de um bem-estar natural e saudável, por oposição ao bem-estar incutido externamente.

Para Renato Morais, esse é um caminho essencialmente efectuado em solidão. E aqui, não estamos em acordo, ou não fosse Renato um amante da Psicologia, e eu com algumas noções elementares de Sociologia. O conhecimento de nós mesmos apenas tem relevância na medida em que somos um animal social (como os outros animais), e em que isso afecta as nossas relações com os objectos exteriores. Se esse caminho fosse efectuado em solidão, o ser humano poderia viver completamente só. Nem esse é o fito do ser humano, nem essa é a sua necessidade. Agora, é facto que o ser humano (como os outros animais) tem momentos com necessidade de isolamento, de auto-análise, mas a auto-análise nem sempre é suficiente, se o fosse, não seriam necessários amigos (numa esfera), psicólogos ou psicanalistas (em outra esfera). O caminho do nosso auto-conhecimento não tem de ser um caminho de solidão. Pode ser, o que é diferente. Mas não o é necessariamente.

Mais a mais, existem reflexões em que ouvir uma opinião externa, desde que genuína (e ao longo dos anos, vamos aprendendo quais as opiniões genuínas, quem é que efectivamente nos diz o que pensa ou acha, e aqueles que nos dizem apenas o que queremos ouvir), se torna fundamental para que nos apercebamos de coisas que, sozinhos, dificilmente ou mesmo nunca, seríamos levados a perceber.

Seja de que forma for, estou em completo acordo com a necessidade de ouvirmos o nosso interior, de lermos o nosso inconsciente, de assumirmos que amplas vezes, o papel que nos atribuíram, ou que nós atribuímos a nós mesmos, não se encaixa na nossa id, não é o nosso “eu”, é algo que depende e se amarra em constrangimentos sociais e pessoais, algo que idealizamos ou que nos traçaram (e aí, a escolha de um personagem príncipe é de uma lucidez e genialidade extraordinárias). E, um enorme mérito do livro, é o de não entender que essas amarras são eternas, mas que cabe à própria pessoa soltar-se delas. O caminho efectuado pelo príncipe vai em completo contra-ciclo em relação aos padrões “de sucesso” da nossa sociedade atomizada e anómica, mas é de uma coragem extrema (mais ainda por ser um príncipe).


A ambos os autores, desconhecidos do grande público, tão ávido em ler porcarias, endereço as maiores felicidades, além de um obrigado por partilharem connosco, os que lemos os vossos livros, a vossa honestidade intelectual e, com isso, me terem feito reflectir e ter sentido prazer em ler ambos os livros.
E espero que, mesmo discordando, entendam a franqueza das minhas opiniões.

1 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Li agora neste blogue os comentários ao meu romance e desejo agradecer a franqueza e a clareza das sua opiniões. Eu preciso muito disto, de ler verdades que me permitem ter noção das minhas perplexidades e limitações. Muito obrigado, muito obrigado. Os meus cumprimentos. Fernando Morgado de Andradew

6:21 da tarde  

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