Nome:

sou um pardal ateu e é isso...

quinta-feira, setembro 28, 2006

A Falta da Falta da Falta (VI)

De uma forma ou de outra, foi se embrenhando mais e mais no seu trabalho. Acontece é que, à medida que as rotinas se instalavam e se sucediam, até as novidades lhe cheiravam a velho. E na velhice estavam também os seus pais. Perdera o fôlego para uma série de coisas. A felicidade que sentia em cada descoberta nova, em cada projecto concretizado, soava-lhe sempre mais efémera que a felicidade das suas amigas quando falavam nos filhos. Havia altura em que essas conversas a seduziam, e outras em que a incomodavam.

Uma noite sonhou. Sonhou com ele. Ele estivera ali, ao seu lado, e lhe dissera palavras ao ouvido enquanto ela dormia. Mas, abertos os olhos, ninguém a não ser ela na cama. Foi à cozinha beber água, e sentiu um arrepio. Voltou ao quarto e tentou se recordar das palavras... tinha quase a certeza que ele tinha dito “vem-me visitar”, mas que essa frase fora precedida de outra que ela não conseguia recordar. Tinha a certeza que ouvira mais coisas, mas não conseguia se lembrar. De qualquer forma, fora apenas um sonho. Ainda teria... ainda teria sentido aquela lembrança? Porquê ele? Porque não outro?
Onde teria ela guardado os textos que ele lhe escrevera? Estavam em algum caixote... levantou-se e tentou encontrá-los, mas, nada...
Amanhecera. Pouco dormira. E sentia algo dentro de si a latejar.

Mais um dia de trabalho, mais um de dia de vida. Os constantes vai-véns ao estrangeiro perderam a aura de encanto que haviam tido em outros tempos. Se antes se pelava toda por ouvir palestras, dar o melhor de si, jantar com alguns participantes e ir a um bar uma por outra vez, observava agora que encarava tudo isso como um enfado. Ia cedo para o quarto do hotel e lá, sonhava uma por outra vez enquanto tomava banho. Os sonhos nocturnos, quando deles se lembrava, passavam amplas vezes por choro de crianças. Algumas vezes, sentia que possuía uma existência paralela, em que a sua vida tinha tomado um outro rumo. Sonhava com outras paisagens, que por certo não se situavam no hemisfério norte. Sonhava com pessoas que nunca vira, mas nesses sonhos era notória a marca de existência de uma família. Às vezes sonhava com discussões, algumas brigas feias. Sonhava também que era amada. Que era compreendida.

Ela não tinha tido a sorte de encontrar um marido que a apoiasse. Nem todas tinham sorte na vida. Mesmo muitas de suas amigas não percebiam a necessidade que ela sentia de se dedicar afincadamente ao seu trabalho. Por vezes, particularmente durante a noite, ela própria ficava baralhada com essa dedicação. Lembra-se de uma frase que dissera uma vez: “Se calhar as outras têm maridos que as apoiam!”. Ele respondera-lhe: “Procura um.” Isso fora há já muitos anos. Ele nessa noite falara-lhe no efeito bola de neve que a dedicação ao trabalho iria causar na sua vida. Que ela não daria conta de como se ia envolver mais e mais, deixando o resto para segundo plano. E também dissera que as pessoas normalmente não acreditam quando alguém as avisa disso. E ela, de facto, não acreditara. Como de costume, achara um exagero. Apesar de as palavras não terem sido essas, estava certa que o que passara na cabeça dele quando lhe dissera essas palavras é que as pessoas se embriagavam com a carreira, e, por não terem a lucidez devida, não vislumbram como vão esquecendo o mundo dos afectos. No fundo ela também não tinha acreditado. Tantos anos passados e sabia que ele tinha errado. Por defeito. A realidade era ainda mais cruel. A solidão era portadora de uma amargura asfixiante, que lhe afunilava os dias.

Estúpido, imbecil! Por certo, a vida o castigou com força. Quer ele quisesse, quer não, com os ideais dele, seria sempre um pobretanas. Quem se iria interessar por ele? Estúpido, palerma sem ambição! Estúpido, estúpido! Onde estás, onde estás, seu estúpido, seu parvo? Abraça-me...