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sou um pardal ateu e é isso...

sábado, setembro 16, 2006

A Falta da Falta da Falta (IV)

Esperou, é certo, mas a espera nada gerou além do desencanto. Não tinha coragem de voltar a ligar e não recebera qualquer chamada de retorno. Teve vontade de se insultar, teve vontade de voltar atrás e não ceder à tentação de marcar o número que estava esculpido com mais força pelo cinzel dos acontecimentos do que aquilo que se apercebia.

Após um sono agitado, levantou-se com aquela certeza que caracterizava a sua personalidade. A certeza que apenas fora um gesto de penosa fraqueza num momento de solidão. Nada tinha a recear. O sucesso vislumbrava-se a passos largos na sua carreira. Estava a caminhar para o topo. Decidiu encetar um projecto que alimentava em si há alguns anos: passar uma temporada a trabalhar no exterior, tentando ascender ainda mais profissionalmente, elevar-se a um ponto em que poucos chegam e alcandorar-se. Sim, era feliz no que fazia e quanto melhor fosse, mais feliz se tornaria. Tinha a certeza...

Não demorou muito tempo a ser aceite onde pretendia. Uma instituição de renome, onde ficaria por quatro anos, onde contactaria com outra gente, outras mentalidades, novas formas de trabalhar, novos processos. E tudo enriqueceria o seu currículo, e toda a aquisição de conhecimentos ser-lhe-ia indispensável, de acordo com o seu ponto de vista, para a prossecução da sua vida futura.

Os primeiros tempos foram de adaptação linguística e geográfica; seguiu-se o deslumbramento com o trabalho, o entusiasmo por se sentir num processo de integração nada doloroso, e pertencer a uma elite, uma restrita e prestigiada elite. A falta de casa era menor do que pensara inicialmente. Assim se passaram largos meses, em telefonemas e e-mails para a família e amigos, mesmo uma visita de uma semana para os reencontrar. Conheceu alguém no país de acolhimento. Iniciou outra relação, mais promissora ainda que a anterior. Alguém que exercia a mesma profissão, certamente era alguém com quem seria fácil discutir o dia a dia. E foi. Até a monotonia tomar conta de ambos. A separação gerou alguns incómodos. O trabalharem no mesmo local, não ajudava. Entretanto, sucediam-se os convites para participar em encontros e palestras, algo que gerava um enorme contentamento dentro de si. De cada vez que um trabalho seu era admitido em alguma revista, rejubilava e extasiava. Espraiava a sua alegria, telefonando para as suas amizades mais próximas.

Foi precisamente com uma amizade que teve um desgosto. Um desgosto para o qual o seu instinto havia avisado anos atrás. Um dia, ao telefonar a uma amiga para lhe dar conta de como estava feliz ao ter sido convidada para integrar um comité internacional da especialidade a que se dedicara, ouviu, num tom cortante, “ah, sim? Que bom. Fico feliz por ti, mas agora tenho que desligar. Que te corra bem.”
De início, nem deu bem conta. Ao fim de uma hora, apercebeu-se que algo não tinha batido certo. “Lá estaria mal disposta, com algum problema.” Ligou no dia seguinte a perguntar se estava tudo bem. A sua amiga disse que sim, mas que tinha que desligar. Perguntou-lhe: “O que se passa? Estás chateada comigo por alguma razão?”. Teve como sinistra resposta: “Cansei-me da tua fanfarronice. Cansei-me de anos a te ouvir dizer que fazias isto e mais aquilo, que eras um caso de sucesso como poucos. Aos poucos, foste te afastando de todos e vivendo apenas para ti. Não te desejo mal. Mas não acho que tenhamos grande coisa para dizermos uma à outra.” E com isto, desligou.

Sentiu-se atordoada e chorou. E foi então que uma grande dor tomou conta de si. Foi então que ele lhe voltou à mente. Sentiu necessidade do seu abraço, mas ele não estava ali. Talvez nem em lugar nenhum. Onde? Onde estaria? O que faria? O que diria ele agora do seu sucesso?
Quanto à sua amiga, seria inveja, certamente. Inveja.


(continua)