Um Olhar Sobre o Outro
Receber convidados em casa tem alguns incómodos naturais, provocados pela perturbação do dia a dia, da rotina instituída, mas também permite fazer uma melhor observação daquilo que somos e confrontarmo-nos com o nosso egoísmo (ou talvez egocentrismo) diário. Se dele saímos ou não, se fazemos uma auto-crítica, e se algo tentamos corrigir, é sinal que nos aperfeiçoamos. Se assobiamos para o lado, é mais uma forma de sermos crescentemente incapazes de entender os outros e de nos enredarmos em torno de nós mesmos, vivendo, ainda que de forma inadvertida, como se fossemos o Sol no firmamento. A única questão é que, se todos fossemos assim, então o céu não seria mais que um amontoado de estrelas a incandescer, gerando uma temperatura infernal e sendo impossível de habitar.
Receber um convidado implica saber partilhar o nosso espaço, a nossa comida, os nossos bens, os nossos hábitos, os nossos desmazelos, as nossas manias. Um convidado pode ser mais ou menos observador, mas dificilmente ele se assemelhará a nós em tudo. Pode acontecer que algo que julgamos como perfeitamente natural seja, para o convidado, algo sem sentido. Isso não significa que não tenhamos direito a ter as nossas pequenas idiossincrassias. Significa é que teremos que ser capazes de as avaliar e, eventualmente, concluir que algumas são ridículas, outras são engraçadas, outras são insensatas e outras confortáveis.
No entanto, é prudente lembrar que o convidado também tem os seus hábitos, e que convém também entendê-los antes de os criticar. Imaginemos que convidamos alguém para nossa casa que gosta sempre de tomar banho antes de jantar. É uma mania. Pode nos ser estranho. Mas porque razão haveremos de dizer que não? Causa algum grande estrago em nossas vidas? Então, ele que tome o banho que lhe sabe bem.
Outro tipo de situação é quando o convidado surge em época de trabalho. Não temos tempo para andar com ele para tudo que é lado. E temos os nossos afazeres, pessoas para visitar, sair mais tarde do trabalho um dia ou outro, etc. E agora? Crie na sua mente a situação de receber alguém em sua casa e, num dado dia, ser convidado para jantar em casa de uns tios. Dilema: o que fazer? Há diversas opções: ou se diz aos tios que temos gente em casa, e se há algum problema em que a pessoa possa ir (se tal for do interesse dela), ou deixamos a chave de casa ao convidado para que ele possa vir à vontade e se acomodar, ou pedimos a alguém da nossa confiança que faça companhia ao convidado (mais lógico se o convidado for um turista e quiser passear acompanhado). Parece óbvio e elementar, não parece? Parece…
E que tal se nos virarmos para o convidado “Olhe lá, hoje só apareça cá à meia-noite porque eu não vou jantar em casa. Até logo!”? É bonito isto? Não, é feio, é de má educação, revela falta de respeito e desprezo pelo ser alheio. Nesse momento, apenas nos preocupamos com a nossa pessoa. Recebemos um convite para ir jantar, vamos e a pessoa que hospedamos em nossa casa, que se arranje. Se nos colocarmos no lugar do outro, sem dúvida que nos sentiremos desconfortáveis e magoados. Acontece que, colocarmo-nos no lugar do outro implica olhar para ele e termos a noção que cometemos erros e que os deveremos corrigir. E isso implica fazer cedências naquilo que somos (ou pensamos ser).
A pior parte é quando fazemos isto com alguém com quem temos à-vontade. Por razões estranhas que o nosso cérebro confabula, somos capazes de ter mais cuidado e evitar fazer isto com alguém com quem conhecemos mal, mas com um grande amigo, com o parceiro ou um familiar, tendemos a errar mais. Pelo facto de termos aquelas pessoas presentes, e acharmos que elas estão presentes naturalmente, tendemos a não as tratar correctamente. Achamos que não há mal nenhum e não damos conta que as ferimos mais do que a um desconhecido, que não tem laços afectivos que o liguem a nós.
Depois não somos capazes de perceber um olhar triste, não reconhecemos um sorriso ou uma observação melancólica, porque apenas nos preocupamos com o nosso mundinho. Será mesmo correcto alguém se virar para um amigo que recebemos em nossa casa e dizer: “Hoje chego tarde, vais ter que esperar em algum lugar por mim.” É nosso amigo? Se não o pudermos levar (e nem sempre poderemos), então que lhe entreguemos a chave do nosso lar. Obrigá-lo a fazer qualquer outra coisa apenas porque nos dá jeito é egoísta e mesquinho.
O ser humano nunca viveu tanto em solidão quanto hoje. Pudera: nunca tomou atitudes tão mesquinhas e pequeninas quanto a aqui descrita como nos nossos dias. Mudar o mundo para melhor é mudar os nossos pequenos gestos errados. É sermos capazes de pensar nos outros primeiro. Talvez isso nos magoe, a nós e a eles, muito menos. Mas não é assim tão impossível. Embora seja difícil.
O egoísmo é cómodo. E solitário.
4 Comments:
Com o maximo de lucidez possivel e a objectividade de quem escreve com sinceridade. Grande amigo e mentor. Aquele forte abraço, o nosso claro.
Cumprimento mais esta prova de lúcida análise ponderativa e a capacidade - que se vem revelando -da sua extensão aos já muitos e diversos temas tratados.
(falhou um - i -)
escrever bem sobre cosas simples é por vezes bem complicado ... é o caso. Gostei
BdTig
Temos o hábito de receber os amigos e alguns conhecidos que provavelmente irão se tornar amigos e é bem assim.Engraçado que uma vez um amigo veio em casa e o chuveiro da casa de banho socila estava estragado. Ele saiu na calada, comprou um novo, instalou, e tomou seu banho.Fiquei mesmo desconcertado com tal situação.E ele dizia," se eu não puder vir à sua casa e fazer o que fiz vou para um hotel".
Que coisa não...Logo depois que ele foi embora o chuveiro do outro banho queimou, passei alguns dias tomando banho no chuveiro que ganhei de presente de um amigo muito querido.Nesse caso é melhor aproveitar!!!
O fato é, quase toda regra acaba sendo quebrada.Isso acontece naturalmente, ainda bem ou teria eu que tomar banho frio no inverno...eehheh....
Grande abraço.
Ricardo
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