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sou um pardal ateu e é isso...

quinta-feira, julho 27, 2006

A Falta da falta da falta (II)

O grito não era de desespero, dor ou fúria. Pelo menos, não era de nenhum destes desvarios em separado; talvez fosse de um pouco de cada conjuntamente. Era mais um chamado, um chamado que tanto era dirigido ao interior como ao exterior. Era a vontade indomável de tentar encontrar o ser que adivinhara a cor do quarto, sem lá ter colocado os pés. Ou teria?

De facto, com aquela criatura, era impossível saber. Fora sempre impossível saber. Entrara, não sabia ao certo se entrara devagar ou depressa, mas encontrara dentro de si um lugar onde se alojar e criar raízes. E criara-as, de facto. Agora pretendia a sua volta. E obtinha a sua visita. Imaterial. Caramba, a sua presença parecia eterna, como se fosse um mistério que se divertia a entranhar-se em sua mente. Como se sempre tivesse existido. Exacto. Quando conhecera essa estranha criatura que um dia partira, tinha sentido uma delirante afinidade. Como se podia sentir afinidade com alguém tão diferente e tão novo em nossa vida? Ora, quando se fora, apercebera-se que essa afinidade tinha um fundo alojado bem dentro de si. Como se algo em si tivesse identificado aquele curioso e estranho ser no preciso instante em que o conhecera. Ou mesmo antes disso.

Nos momentos mais ásperos de solidão, foi juntando pequenas peças. Ao longo dos anos, compreendera que aquela criatura viera em seu socorro, um socorro que nunca pedira, mas que sabia ter vindo das suas profundezas. Um socorro em silêncio; silêncio que fora ouvido e atendido. Mas fora tudo tão complicado… não percebia muitas das coisas que lhe foram ditas. Nunca entendera tanta intensidade ao vivenciar o dia a dia, fosse na alegria, na tristeza, na dor, na felicidade ou até num simples suspiro. Sempre lhe dissera: “deves viver a vida de forma leve”. Ao que ouvia como resposta: “a Vida dói. Mas apenas assim se vive”. Sabia que não pronunciavam “vida” da mesma forma. E nunca percebera a entoação que ouvia naquela voz, mas que sentia ser distinta da sua.

Quando decidiram se separar, pensou que em breve se esqueceria, e que apenas ficariam ligeiras recordações. As mais doces, como sempre. Ledo e cruel pensamento equivocado. Parecia que tinha sempre algo a espernear dentro de si. Algo que lhe fazia uma visita durante o dia ou durante a noite. As discussões, os abraços, os choros, os beijos, as irritações, o sexo, tudo lhe aparecia num luminoso turbilhão. Quando iniciou a relação seguinte, a pessoa que escolhera para a parceria do projecto de vida era simpática, doce, bonita e alegre. Porque raio sempre achara que lhe faltava algo? Ironicamente, muito do que antes criticara, sentia agora falta. Sentia falta daquela criatura que parecia lhe ler os pensamentos (e que depois soube e sentiu que os lera mais vezes do que julgara); sentia falta das horas de choro e briga, sentia falta das explosões. Tinha uma relação firme agora, tinha uma relação calma, estável, financeiramente desafogada. Tinha o que sempre quis ter. Mas não tinha já o que tinha tido e que nunca julgara possível pretender ter.

Ao início, ainda telefonava. Continuava a saber bem ouvir aquela voz. Até ao dia em que, do outro lado, deixaram de atender. Ainda assim, apenas desistiu quando o número deixou de existir.

A sua relação estável acabou por terminar. Ambos se fartaram do marasmo. Podia não ser inédito, mas não era de todo vulgar: a falta que sentia era da relação antecedente. Em pouco tempo, porém, começara outra. Esta, parecia ser a valer: alguém que já conhecia, de quem já gostara; certamente daria certo. Não deu. Entendiam-se bem, não se nega tal aqui nestas breves linhas; sucede apenas que o companheirismo existente inicialmente não se alicerçava em carinho, afecto e entrega física. Fora a primeira vez que se apercebera da real importância da entrega física desmesurada a dois. Só que… não a conseguia ter. Tinha sido com aquela pessoa que mais perdera as estribeiras. Porque subvalorizara tanto isso nessa época? Nunca quis aceitar que fosse um pilar central da construção de uma família (começando pelo núcleo do casal). Hoje, parecia-lhe impossível aprofundar a pessoalidade da relação sem se sentir feliz e prenhe de uma sensação de preenchimento.
Mais uma relação acabaria por findar. Parecia embruxada. Mas sabia não estar. Sabia que dentro de si continuava a carregar um alguém especial.

Um alguém a quem tinha uma raiva desmesurada por nunca mais ter voltado ou dado sinais de vida. Um alguém amaldiçoado, insultado, apedrejado mentalmente, e, em simultâneo, um alguém a quem nunca cessaram os seus pedidos de retorno. Inglórios pedidos, de nunca atendidos, passou a chamar-lhe “os perdidos”.

(Continua…)

2 Comments:

Anonymous Anónimo said...

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11:19 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

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2:48 da manhã  

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