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sou um pardal ateu e é isso...

quarta-feira, maio 03, 2006

Ensaio sobre a (in)fidelidade

Muita coisa se diz e escreve sobre infidelidade nos dias de hoje (e no passado recente). Desde pontos de vista intolerantes a qualquer tipo de infidelidade numa relação até pontos de vista desculpabilizantes de todo e qualquer acto que pareça ser justificado pela individualidade humana e pelo direito a uma poligamia de facto (ainda que monogamia de nome), temos uma panóplia de argumentos tecidos por uma diversa gama de cientistas sociais (e mesmo naturais), filósofos, psicólogos e quejandos.

Contudo, as argumentações pró e contra infidelidade esbarram em si mesmas e pecam por partirem de premissas morais e individuais, em vez de partirem da premissa do ponto de vista da relação em si e do casal.

Como exemplos de argumentação, entende-se amplas vezes como tolerável que exista uma infidelidade numa relação, pois, por exemplo, pode a pessoa que se encontra ao lado (independentemente do sexo da pessoa ou do tipo de relação) não completar a outra em determinados sentidos (o mais comum dos quais o sexual).
Ou seja, temos um casal. As coisas não correm bem, uma facadinha é tolerável. Pode até ser. Vejamos é estes argumentos mais a fundo e encarados sob outra perspectiva.

Ceder a infidelidades é mais do que ceder a si mesmo e trair o outro. A verdadeira traição é do sentimento que se possui por dentro e que se espelha na relação.
A infidelidade é mais comum (e assumida) nos dias de hoje, pela mesma razão que é apontada para o crescente número de divórcios: o direito a ser feliz. Certo, muito bem, todos temos o direito à felicidade. É pena que esta nos seja vendida e apresentada como sabonetes: fácil de comprar, usar e gastar. Será isso a felicidade?

O ser humano tende a alojar-se em extremos e facilitismos. E, sobretudo nas sociedades ocidentais, parece se ter esquecido da profundidade que implica uma relação a dois. Em tempos, não tão distantes quanto isso, uma relação era para toda a vida, quaisquer que fossem as circunstâncias, incluindo violência. Este disparate forçado por uma ordem moral castradora foi trocado por outro que é quase o seu simétrico: ao fim de poucas dificuldades e brigas, desiste-se da relação e tenta-se outra. No primeiro caso, a relação era uma camisa de forças (sobretudo para o elemento feminino); no segundo caso, a relação é uma camisaria, em que se vão experimentando diversas camisas, sem nunca se optar, de facto, por nenhuma.

Nenhum destes casos privilegia a luta a dois que uma relação deve ser. Não uma luta contra, mas uma luta por. Claro que isso representa um caminho árduo, e quem quer caminhos árduos numa sociedade Prozac, do antidepressivo e do prazer imediato? Quer caminhos árduos quem acha que estar aqui faz sentido com alguém especial que faça sentido partilhar aquilo que verdadeiramente somos e o que temos para dar, aquilo que queremos e que achamos que apenas a outra parte pode completar.

Claro que isso implica violar e romper fantasias e efectuar adaptações; aceitar que a outra pessoa não é perfeita e tem defeitos. Aprendermos nós mesmos a, mais que aceitar esses defeitos, entender que são defeitos aos nossos olhos e que o problema pode estar (ou não) em nós. Tentar criar ligações, tentar ir avante em conjunto. Uma relação em que haja plenitude de entrega é uma relação que saiba gerar um terceiro caminho. Todos nós temos hábitos e caminhos individuais. Quereremos ser individualistas toda a nossa vida? Aceitar as limitações do outro equivale a aceitar as nossas próprias, e entender que nada será nunca perfeito. Assim se encontrará a beleza das imperfeições.

Entender a outra parte da relação é mais que meio caminho para não fazer uma troca de camisa ou uma infidelidade momentânea. Explorar todo o interior do companheiro que está ao nosso lado não leva tempo… leva toda a vida. E haverá outra forma de atingir a plenitude numa relação?

Sim, claro, pode-se sempre pensar… eu gostaria que ele/ela fosse assim ou assado, como não é, vou fazer algo com outro alguém… além de conveniente, é uma farsa interna.

Nesse caso, eu tenho um casamento com a Carla, vou dando umas com a Marta e tenho um affair com a Guida, e assim me completo, certo? Se calhar, a Carla é uma óptima mulher, mas a Marta fode melhor e a Guida sabe manter um caso picante… (o mesmo é válido para o reverso da medalha, mulheres em relação a homens e também para casais homossexuais). E todos aceitamos isto alegremente, porque, afinal, isto potencia o desenvolvimento do Eu, não é?

Não, não é. Isto apenas potencia conflitos internos desnecessários e egoístas. Repita-se: se temos alguém ao lado, cabe a nós aceitar que esse alguém não é perfeito. Mas também é verdade que explorar quem está ao nosso lado dá muito mais trabalho e é muito mais difícil que arranjar um(a) amante… dá mais trabalho, mas apenas isso faz a solidez de uma verdadeira relação. A entrega desmedida mútua permite eternizar o amor entre duas pessoas que, de facto, se gostem e pretendam ficar juntas.

Claro, cada um vive a vida como entende… ou como sabe…

Gostaria de dedicar este texto aos meus avós e também à minha grande amiga Maria Helena Coelho, bem como à memória de Carlos Coelho. Foi em vocês que me inspirei para o escrever, vocês que sabem o que é lutar uma vida em conjunto, sem sequer pensar ceder a tentações fáceis.