Calos nos Pés e Bolhas nas Mãos
E se um dia surge em nossas vidas uma relação completamente diferente de todas as outras?
Em vez daquelas relações que começam com os namorados todos deleitosos, suspirando a transpirar ânsia por mais um encontro, no qual trocarão beijos lânguidos e envolventes, um encontro que é uma celebração de paixões e de afectos, um encontro que é uma troca desenfreada de carinhos e sentimentos, de sentidos aguçados e olhares apaixonados entre o latente e o ardente; em vez de tudo o que está descrito atrás, se iniciar uma relação com dúvidas e incertezas, sem grande necessidade da presença do outro, sem gestos que demonstrem grande efusividade sentimental?
Bem, pode ser mau, pode ser apenas uma relação sensaborona, pode ser uma relação de conveniência mútua, pode ser um engano, pode ser um engodo. Pode ser uma decepção, pode ser um soporífero, pode ser um tédio, pode ser um passatempo.
Pode.
Pode também ser uma semente que demora a germinar, que está a procurar o seu espaço dentro de cada uma das pessoas para se desenvolver. Uma semente que cresce lentamente, tentando firmar lentamente, mas de forma segura, as suas raízes no interior de cada uma das partes. A cada penetração de uma raiz em solo firme, virá um voto de protesto do corpo/mente que a alberga; sairá um estrebuchar, que é mais uma lenta forma de aceitação e de sedução que propriamente uma rejeição firme. Esse sentimento, que inicialmente tão pequeno parecia, começa a firmar-se no corpo, começa a sair pelos poros da pele, começa a nascer junto dos pelos, começa a habitar em nossos olhos e torna-se o sangue das nossas veias. Começa a invadir-nos o sono e os sonhos, começa a dançar uma valsa em nosso pensamento. Começa a tomar a forma de um futuro presente, quando inicialmente mais parecia um pretérito imperfeito.
Algo que nos povoa e nos invade, mas que não nos limita, inversamente nos expande. Lentamente, vai existindo uma aproximação, vai se urdindo uma teia de cumplicidades e companheirismo, de carinho e erotismo. De tanto crescer devagar, vai encontrando tempo e espaço para se firmar, ainda que contra a vontade do corpo/mente em que habita. De tão firmado, começa a querer se transcender, começa a sentir a ausência, primeiro de forma doce e suave, depois de forma mais forte, a ponto de em qualquer lugar que o olhar pare, pareça se deter naquilo que quer ver e lá não está.
Torna-se natural acordar com o pensamento naquela pessoa que, inicialmente, nos parecia tão cheia de defeitos e tão impossível de estar ao nosso lado. O desejo do toque segue em curva ascendente.
Ao contrário de uma paixão comum, que tende a esfriar com o tempo, este amor vai pendendo, devagar, mas em passos firmes, para um desvario e plenitude. A aproximação entre ambos os elementos é lenta, mas, quando eles dão conta, estão profundamente ligados. Nessa altura, perdem-se em dúvidas, questionamentos (“não é possível gostar de alguém assim tão diferente”; “ele/ela não é nada do que eu esperava ou queria para mim”). Podem tentar negar a importância do outro. Podem tentar se desligar.
Em vão. Nessa altura, já estão ansiosos em criar algo comum. Mais que ansiosos, desejosos. Mais que desejosos, sequiosos.
E é então que a paixão que, inicialmente, dormia, se espreguiça e acorda pujante de um sono que a encheu de energia, fundindo-a a esse estranho amor que os liga de forma indelével.
Não se vive muitas vezes isto numa vida. Há quem nunca viva. Em muitas de nossas vidas, é algo que surge uma vez. Viva-se essa vez. Nunca mais a nossa vida será a mesma. Será bem mais fértil e intensa.
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