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sou um pardal ateu e é isso...

segunda-feira, maio 15, 2006

Mutação em Público

Por vezes, de forma inadvertida, acabamos por ouvir conversas alheias, ou, pelo menos, excertos delas em alguns lugares públicos. Não vem daí grande mal ao mundo, e até pode existir alguma utilidade, por forma a reflectirmos sobre determinados temas, que poderiam não nos passar pela cabeça.

Vem este preâmbulo a propósito do que me motivou a escrita de hoje.

Duas mulheres conversavam num café. Falavam sobre os maridos, efectuando comparações sibilinas. Eis algo que entre mulheres é comum. As mulheres são capazes de ter uma entreajuda excepcional, e, simultaneamente, levantar dúvidas assassinas. E são capazes de o fazer às suas melhores amigas, o que é extraordinário.

Essas mulheres tinham, na aparência, posturas diferentes sobre seus matrimónios. E, mais que na aparência, na atitude, também. E seus maridos também. Como sempre. Cada caso é um caso. Cada dia é um dia.

E, eis que uma delas diz à outra, “Eu não percebo como é que tu consegues falar do … (o nome é omitido), como se ele fosse o centro do teu universo com esse ar sorridente”; Resposta imediata e rasteira “Porque ele é o centro do meu universo. O ar sorridente, tu nunca conseguirás compreender…”

Ora, ser o centro do universo de alguém?

E sorrir? E ser feliz?

À primeira vista, numa análise individualista, pode causar horror. Pelo menos um certo asco… bom, ok, talvez não asco, mas um arrepio. Ou estranheza. Ou desconfiança.

Porque viver em função de outra pessoa (e é disso que aqui se fala) pode ser mau. Pode. De facto, à primeira vista, pouco haverá de bom. Viver em função de outra pessoa soa a uma auto-limitação muito grande. Parece uma prisão. Parece que não existe mais nada à volta. Parece.

Não existirá? Será que por existir o Sol e a Terra girar em seu redor, não continuam a existir outros planeta e seus satélites, estrelas, cometas, asteróides? E será que a Terra é menos Terra por girar à volta do Sol ou o Sol é mais Sol por isso?

Caramba, comecei a ficar confuso. Eu sou muito individualista, confesso. Mas percebi o que a senhora quis dizer. Ela não deixara de ser quem era por se ter centrado em função do seu marido. Creio mesmo que ela se desenvolvera. Como a Terra se foi desenvolvendo, girando em torno do Sol (e não deixou de girar em torno dela própria).

Isto começou a tornar-se uma luta contra meus dogmas… acho que ainda não acabou… vejamos…

Como é evidente, numa relação, existem abdicações e cedências de parte a parte. Em alguns momentos, essas abdicações são fáceis e noutros são difíceis. Algumas vezes as pessoas não imaginam que levar uma relação a sério implica pequenas enormes alterações.

O que, de forma lamentável, amiúde se esquecem, é do que é criado novo em uma relação. A criação de um “nós” vem alargar os horizontes do “eu”. Senão, o que seria um casamento? Um chegar a casa, dar as boas noites, contar como foi o dia de trabalho, ir dormir, e por aí fora? Casar não é exacerbar a individualidade, por muito que isso custe aos membros de cada casal. Casar é ser capaz de entregar e receber, de abnegar e de obter. Casar é amar. Não se ama querendo continuar a ser o que se é.

E pode-se pensar “amar não é depender”. Ah, não? Então é o quê? Amar é a única forma de dependência que liberta. Quando se ama procura-se a pessoa, ri-se, chora-se, discute-se, batalha-se em conjunto por alguma coisa. Amar é desencontrar e reencontrar. E não passar sem algo. Sem alguém. Na ausência da pessoa, gera-se uma ferida.

E isto significa que as pessoas se estão a anular? Porque significaria? Só porque sentem algo desmedido que as faz querer sentir próximas do outro? Ou significa que as pessoas se estão a recriar?

Goste-se ou não, o amor é a droga mais potente que existe, e, sim, gera dependência. Se não gerasse, não seria amor. Quem não o quer que o largue, quem o quer que o agarre.

Amar implica mudar formas e estilos de vida, alterar antigos hábitos e gerar novos, implica o sacrifício e a descoberta, e implica, sim, viver em função da outra pessoa. Isso não significa o fim daquilo que somos, mas antes um novo começo. E uma complementaridade impossível de obter por outra via.

Mas percebo as reservas (aliás, as minhas são imensas e apenas aos poucos fui vencendo minhas ideias pré-definidas): não se sabe onde se vai parar e, além do medo, há sempre aquele egoísmo natural que nos faz dizer à boca cheia: eu não vou deixar de ser quem sou. Ah, vou, vou. Quer goste, quer não goste. O segredo é ir gostando…

Quando as pessoas amam profunda e visceralmente, acabam por se ligar de forma umbilical. De forma mútua. Daí o se tornarem o centro do universo um para o outro. Claro que continua a existir o mundo em volta. Mas até esse mundo ganha uma outra cor com o tempo. Às vezes dá vontade de voltar atrás. Dá. Mas não se volta. A atracção gravítica não deixa. A fusão celular não o permite.

Parece mau? Talvez… nem toda a gente está preparada para isso… e eu próprio estou ainda a tactear nesse sentido. Mas é inútil fazer finca-pé e dizer que se acha ridículo e perigoso “viver em função da outra pessoa”. Não adianta, ou se vive mesmo e assim se ama, ou não se vive e pensa-se que se ama. O amor não tem meios termos, alimenta-se de extremos. Os extremos que não se vive quando, num matrimónio, se continua a privilegiar o resto e não o parceiro. Então, não se ame. É uma opção de vida. Que mata o amor. E reduz a Vida à vida. Parece igual. Parece. É apenas uma questão de uma letra. Uma pequena maiúscula questão.

Confesso que resolvi debater o tema com duas amigas minhas muito diferentes antes de escrever esta crónica. Surpreendentemente, ou talvez não, ambas me deram a mesma resposta: é inevitável quando se ama a sério que a outra pessoa se torne a nossa vida e vice-versa. É uma questão de tempo. E isso não é prejudicial (conforme me disse uma delas, “como tu deves estar a pensar, ou já não te conhecesse eu há muitos anos”. Obrigado pela boca…). É saudável. Mais que destruir, constrói.

Acredito… mas assusta como o caralho!

Sobre o que me assusta, escreverei, quem sabe, outra crónica.

Queria agradecer às duas anónimas senhoras a oportunidade de utilizar um excerto da conversa. Queria agradecer às minhas amigas (que manterei no anonimato também) o terem discutido comigo o assunto e me terem forçado a reflectir profundamente, sem restrições ou bloqueios.

E queria dizer que talvez agora entenda um pouco melhor quando ouço, na boca de algumas mulheres (um homem é raro dizer isto), a expressão “minha vida”. E, sim, percebo, pelo menos em parte, o sorriso da senhora do café. Fazem falta mais sorrisos desses…

4 Comments:

Blogger Gustavo André said...

mtooooo bom concordo plenamente!! tiveste mtooo bem!! ;)

11:25 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Ver um homem a escrever isto é uma grata surpresa... e tendo em conta o restante blog, queria a sorte de te conhecer um dia... beijos

2:40 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

sorte de quem te tem ao lado! tens quem cuide de ti?

3:40 da tarde  
Blogger MARIA JOAO TEIXEIRA said...

Opah... este post está fantástico! Achas q seria possivel dares-me autorização para por um link para ele nu meu blog? Desde já parabéns por todos os outros... tb estão demais!! Bj

10:02 da tarde  

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