Cortes e Rupturas
Por alguma razão que a minha mente mantém encerrada em suas profundas catacumbas, dei por mim a deitar fora parte do meu passado. Não, não renegá-lo, o que se viveu faz parte de nós.
Mas é querer e saber que essa parte de nós deve ser uma lápide que, por mais bela e trabalhada que seja, não deverá passar de exactamente isso: uma lápide.
Seja uma questão de equilíbrio ou mera sanidade mental, seja uma questão de higiene ou uma questão de falta de espaço, o certo é que, por muito que eu não goste dos Delfins, há uma frase de uma música deles que tem muita razão de ser: “A queimar o meu passado, p’ra curtir o meu futuro” (a música chama-se Sal).
Amplas vezes nos agarramos ao nosso passado como forma de nos protegermos do presente e fugirmos do futuro. Abraçamo-nos a amores perdidos, paixões mal vividas, amizades desfeitas, passatempos antigos. Abraçamo-nos àquilo que fomos e já não somos mais. Na tentativa de nos iludirmos. Fazermos de conta que somos imutáveis. Eternizar o temporário. E, com frequência, assassinar o que à nossa frente está.
Por questões históricas, culturais e genéticas, a mulher é algo mais propensa a se agarrar ao passado que o homem. Ela tem uma maior necessidade de segurança e protecção. Então, tende a refugiar-se em momentos confortáveis do passado. Enquanto se abriga nesse morno refúgio, muitos outros momentos do presente e do futuro se lhe escapam por entre os dedos.
Contudo, a mulher é igualmente capaz de efectuar os cortes mais radicais com o seu passado quando encontra uma forte razão para ir em frente. Estranho bicho este…
O passado… o passado são e-mails que se apagam, cartas que se rasgam, fotos que não se revelam e outras que se somem… são objectos cujo significado nos pede para ser esquecido, são memórias que suplicam para serem naufragadas, para saudavelmente darem lugar ao novo.
Todos nós tivemos importantes amizades no passado. Se fizermos um esforço, amigos e amigas que julgámos em certas alturas que nos acompanhariam para o resto da vida… hoje, onde estão? E será que nos fazem assim tanta falta, ou, se pelo caminho ficaram, é porque o seu papel em nossa vida (e o nosso na deles) estava cumprido?
Existe ainda um outro factor: há amizades que são adequadas e importantes em algumas alturas da nossa vida, mas que se podem dissolver ou mesmo tornar-se prejudiciais em outras. As amizades não são constantes, conforme as pessoas se vão alterando, podem seguir rumos que se dissociem definitivamente. Uma das razões é que, coisas, gestos, atitudes, formas de estar na vida, que nos pareceriam, por exemplo, muito acertadas para os 25 anos, se revelarão um desastre se forem mantidas aos 35. isto não é envelhecer no sentido metafórico. É envelhecer no sentido literal. O corpo envelhece, a mente adapta-se, ou cristaliza-se num ideário ultrapassado que, de querer parecer eternamente jovem, se torna uma múmia em si. Querer viver aos 35 da mesma forma que aos 25, é recusar-se a aceitar que há coisas que já lá foram. Terão sido boas ou razoáveis ou más (a nossa mente aí prega-nos partidas, pois, por uma questão de sobrevivência do interior, valorizamos mais as boas). Terão. Foram. Já não são. Por muito que queiramos dizer que continuam a ser.
Um grande amigo ou amiga numa dada idade pode, assim, se tornar um sério empecilho mais tarde. Assim como um(a) colega um(a) ex-namorado/a, ou mesmo pequenas recordações materiais.
O raciocínio fica incompleto, e aberto a sugestões.
Voltarei a este tema mais tarde. Em breve retomarei o tema da música, conforme prometi há algum tempo, e que foi deixado em aberto há algumas crónicas atrás.
Até lá, que os dias se sucedam numa cadência irregular, para não nos transmitir nem uma sensação de rotina, nem de enfartamento.
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