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sou um pardal ateu e é isso...

sexta-feira, setembro 08, 2006

Negro Fado

No momento em que escrevo sinto tocar-me o gelatinoso espernear da depressão. Uma certa tristeza que não deixa o meu dia a dia incólume e, que, inversamente, me faz senti-lo como um arrastar dilacerante e em que o entusiasmo se foi deixando substituir pelo marasmo. Creio que, acima de tudo, é patente em mim uma enorme repulsa pela vida nos nossos dias, e essa repulsa que me leva a escrever e a vomitar esta torrente de observações, críticas, reparos, sugestões e opiniões.
Não nego que preferia viver em outras épocas, talvez uma época (e um lugar), em que a palavra “Honra” tivesse um significado muito mais profundo do que aquele que possui nos nossos dias. O facto de estarmos vergados ao poder ridículo e diáfano do dinheiro, de permitirmos que as ilusões da aparência nos façam crer que somos mais evoluídos porque generalizamos os perfumes, a moda, os telemóveis e os cartões de crédito, despertam em mim um misto de angústia, sufoco e terror, pela alarvidade cretinizadora em que coabitamos.

O nosso sorriso é mais declarado (e falso) perante alguém que entendemos ser importante. Confundimos liberdade com libertinagem. Parte do feminismo não é mais que um egocentrismo arrogante e presunçoso. As tertúlias transformaram-se em bebedeiras. A vida académica não é mais, muitas vezes, que álcool, drogas, humilhações e sexo barato e entorpecido. A ascensão na carreira (algo que preocupa imenso os lamentáveis seres humanos), faz-se à custa do pisotear princípios éticos e valores respeitáveis. Destruímos o ambiente numa voracidade consumista que nos é incitada desde tenra idade, e que adoptamos garbosamente. Assimilamos a solidão e confundimos confraternização com luxúria. Preocupamo-nos com a utilidade que as pessoas podem ter para nós e não com aquilo que elas são e necessitam. Adormecemos nossas consciências ou compramo-las através de donativos ou voluntariados enxabidos. Substituímos o livro pela consola e pela TV, trocamos a ópera e as composições de diferentes etnias por batidas electrónicas ritmantes e compulsivas. Tentamos doentiamente prolongar a nossa existência para além do tolerável.

Talvez o mais negro consista em que o fazemos de forma consciente e com o altivo convencimento que caminhamos no sentido correcto. Incitamos os nossos sucessores a fazerem pior que nós, no doce sonho que eles estão, ao invés, a fazer ainda melhor. Porque equivocamos as nossas definições, ao assimilar como sinónimos os conceitos de “mais” e “melhor”. Mais do que é mau apenas pode ser pior.

No entanto, temos que nos deixar de lamúrias e viver sem ironia acintosa. Festejemos as festas que todos celebram, bebamos até cair para o lado, para esquecer, ou melhor, para que, por momentos, não nos lembremos do que nos atormenta. Passemos onze meses a sonhar com o mês de férias, na falsa convicção que esse mês compensa a espera a que nos sujeitamos na vaga esperança de nele concentramos, como um pó milagroso, ou sumo foleiro de hipermercado, a felicidade que nos passa bem ao lado, em quantos de nós, durante uma vida.
E gargalhemos, rejubilemos com as pequenas insignificâncias às quais concedemos o estatuto de deuses. Glorifiquemos os inertes adereços que nos enlaçam a vida com a força de um garrote. Brindemos, brindemos ao facto de podermos consumir um pouco mais a cada dia, esgotando o tempo que nos escorre pelos poros e que não permite que qualquer mão o agarre, pois não respeita a sujeição ao tacto. Vibremos com as mesquinhas vitórias que nos levam a nenhures e que, em todos nós, culminarão com o inevitável mergulhar nas trevas que tanto tentamos afastar da nossa existência.

É... dar as mãos é apenas uma forma de não estrangular o pescoço alheio...