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sou um pardal ateu e é isso...

terça-feira, setembro 26, 2006

Sim, Lembro-me

Lembro-me de ti, lembro-me do quarto com as paredes brancas, tu deitado, com os tubos que te entravam pelas veias e te invadiam o sangue, sangue já fraco e dilacerado. Lembro-me da tua voz, que já nem fio era, quando muito um fiapo, a saudar-me à chegada, na lucidez que mantiveste até ao derradeiro momento. Lembro-me das mãos esquálidas, do já então delgado peito, da palidez do rosto e do odor ao que te consumia e de ti se evaporava nas tuas exangues glândulas sudoríparas.

Lembro-me do teu olhar, vagamente vazio, e a carregar a imensidão dos dias passados. Um olhar que feria o nosso, não só pela profundidade que exalava, longe dos tempos em que exultava alegria ou espraiava a sua avidez de compreensão e de conforto, que, um dia, finalmente satisfizeste. Lembro-me de quando conheceste a tua mulher, de como foi amor à primeira vista, de como se afeiçoaram, se apegaram e se entregaram.

Lembro-me de me contares as suas visitas diárias, bem como da dos teus filhos, e do quanto eles se esforçavam para te trazer doces às escondidas, e de como regalado os comias, ainda que horas depois os vomitasses, na insuportabilidade que teu estômago demonstrava em receber o que a tua mente tanto prazer tinha em ingerir.

Lembro-me de me tomares como confessor e quereres que eu escutasse teus erros, tua imensa dor de sentires que falharas, de me revelares momentos de angústia e dor, momentos que viveste e que te deixaram marcas, e sobretudo, lembro-me de partilhares comigo a imensa lástima que sentias em teu mais profundo interior, em cada canto de nós mesmos que parece apenas admitirmos que existe nessas horas em que o manto negro do fim se aproxima para nos envolver e não mais largar.

Lembro-me do teu remorso, remorso por não teres passado mais tempo com teus filhos, por estares ausente em aniversários, fins de semana e intermináveis noites à semana. Lembro-me de como a alegria te teus inúmeros projectos se foi atenuando com o passar dos anos, e lembro-me que eu dera conta dessa transformação em ti muito antes de tu te aperceberes, sequer, que estavas vagamente diferente.

Lembro-me de me falares com orgulho e ânsia da tua mulher, do quanto ela foi tua companheira, do quanto ela te mostrou que tu não conhecias, do quanto ela colocou travão em teus desvarios, do quanto ela suportou tuas ausências, tua falta de entrega aos filhos e a ela mesma. Lembro-me de me dizeres que a admiravas, por, mesmo com tudo isso, ela continuar sempre presente, e não esmorecer ante o avanço imparável da doença, antes vir plena de uma força que nenhum de nós sabia de onde brotava.

Lembro-me do teu filho mais velho a entrar um dia em que dormias, te segurar em tua mole mão, sussurrar “pai” e ali ficar até terminar a hora da visita, teus olhos permanecendo cerrados e vossas mãos unidas.

Lembro-me da tua mulher me agradecer cada visita que te fiz, cada instante em que te acompanhei em teus momentos finais, de ter sido o primeiro a dar os sinais de alerta que tu tanto fizeste questão de ignorar, afirmando serem incómodos passageiros. Lembro-me de ela me pedir para segurar uma alça do teu caixão quando te fosses para não mais voltar.

Lembro-me de me revelares as tuas vontades, de dizer que trocarias todo o dinheiro e posses que lhes deixavas por mais um dia com todos eles, por uma série de pequenas coisas às quais nunca deste o valor e que, inclusive, ironizavas comigo por eu as entender como fundamentais. Lembro-me de te culpares por tantas vezes gozares as tuas férias separadamente da tua família, de insistires em estar com teus amigos em restaurantes e bares, em vez de os levares a tua casa.

Lembro-me das lágrimas que escorreram por teu rosto sem cessar, quando pediste perdão à tua filha mais nova por nunca teres tido tempo para lhe ler histórias ao deitar, por sentires que ela tanto tinha pedido a tua presença, e tu, tentando compensar a falta de tempo que nunca é compensável nem reciclável, nem admite trocas, lhe oferecias mais uma boneca ou lhe davas dinheiro para roupa.

Lembro-me essa mesma moça te passar a mão na tua cabeça na única vez em que nos cruzamos no bafiento quarto do hospital, lembro-me bem que foi esse gesto que despoletou as tuas lágrimas e fez verter toda a amargura que acumularas inconscientemente, e que fez sair as palavras sentidas que lhe dirigiste, em que tentaste suprir a falta que lhe impuseste durante anos, num único momento, sem saberes que esse momento amenizaria, sim, o passado, mas não o apagaria.

Lembro-me de me pedires para destruir todas as cartas de felicitações que recebeste, todos os diplomas de mérito, todas as ordens de reconhecimento, e até para deitar fora alguns prémios que receberas, por ser uma forma de tu exprimires e acalmares essa revolta que explodia em ti e te fazia sentir culpado, uma forma de me mostrares, sem palavra dizeres, que reconhecias o teu erro e que me davas razão. Sabes bem que a preferia não ter tido e que tivesses estado presente na tua vida e na vida da tua família de outra forma.

Lembro-me dos pedidos finais que me fizeste, e que prometi guardar segredo, mas te garanto que os cumpri e cumprirei. E o último abraço que te dei ficará gravado em mim, não só pela memória de teu corpo frágil e agonizante, mas pelo teu olhar que misturava súplica e gratidão em simultâneo.

E, antes que me esqueça, eles estão todos bem. Sentem a tua falta, ainda que mitigada pela tua tão presente ausência em vida. Isso não mudou com a tua morte. Apenas sabem que não voltas mais. O mais velho já casou. E nisso, o teu desejo que ele não cometesse os mesmos erros que tu, parece estar a ser satisfeito. Ela mudou de emprego e também está bem. Quanto à tua mulher, bem, é quem mais sofre, mas isso mudará em breve. Se aqui estivesses partilharias da mesma alegria, porque irias ser avô dentro de alguns meses.

Um abraço e até sempre.