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sou um pardal ateu e é isso...

terça-feira, outubro 31, 2006

A Falta da Falta da Falta (VII)

Um dia, recebeu um convite de uma amiga sua estrangeira para ir passar uns dias com ela. Foram de férias uma semana. A sua amiga tivera tanta sorte, em ter tido um marido assim, que a deixasse ir passar férias com os amigos ou colegas, sem levantar obstáculos. Na primeira noite, ao jantar, comentou isso com ela. Esta retorquiu-lhe: “eu já não estou casada.”.

Aquilo apanhou-a de surpresa. Apenas vira o marido uma vez, mas sempre admirara a forma desprendida como ele encarava as incursões da mulher ao exterior. Algo de sério se teria passado. “Passou, passou... ele aproveitava as minhas saídas para andar com outras. Até que passou a andar só com uma. E com ela ficou!”; “Os homens realmente não prestam.... Vais ver que, com o tempo te sentes melhor! Estás melhor assim, sem ele!”. Pelo olhar da amiga, logo se arrependeu de ter proferido estas palavras. “Melhor sem ele? Pensas que não me culpo? Pensas que não sei bem que, se me tivesse dedicado um pouco mais, as coisas teriam sido de outra forma?”; “Mas ele aproveitava-se da tua ausência para estar com outras... isso é indecente, desculpa lá que te diga!”; “Também foi indecente da minha parte tantas vezes trabalhar sete dias por semana, passar a vida preocupada com mais uma meta a atingir. Foi indecente nunca ter tido tempo para o ouvir, para lhe dar carinho, para o apoiar.”; “Ele atirou-te isso à cara?”; “Ele há anos que me deixou de atirar fosse o que fosse à cara. Decerto achou inútil, e foi a partir daí que começou a ter outras”; “Mas tu não tens culpa de nada, ele tinha que entender as tuas prioridades, as tuas opções, era importante para ti, os teus projectos...”.

Foi interrompida por uma frase sibilante, exprimida num tom dorido, “E como se eu alguma vez tivesse entendido as prioridades dele. Passou anos a querer ter filhos, e eu fui adiando, adiando... quando o tive, já estávamos a viver cada um para seu lado. Não, sabes porque não o culpo? Porque sinto que, no lugar dele, eu teria feito o mesmo. Não teria aguentado e teria arranjado um suporte. Minha mãe bem me avisara... muitas vezes...”; “Tua mãe? Que te dizia tua mãe?”; “Que não era assim que se tratava um homem. Que ele era muito bom e paciente, mas que a paciência acaba.”; “Agora tens mais é que deixar isso para trás das costas. Ele ficou com o teu filho, enquanto vieste de férias?”, “Não, o filho fica à tutela dele.”; “O quê?? Mas ele é um adúltero! Não percebo como é que um tribunal decide...”; a amiga interrompe-a bruscamente: “Tribunal? Quem falou em tribunal? Foi de comum acordo que decidimos assim. Ou pensas que a minha vida me permite parar para cuidar do meu filho? Quem dera. Construí a minha própria jaula, achando que o fazia do lado de fora. Mas fi-lo por dentro, e esqueci-me de abrir uma porta.”; “Pensa que és uma mulher brilhante, prestigiada, com uma carreira que poucas pessoas do ramo se podem gabar de ter...”; “Sabes o que te digo? Merda para a carreira! Merda para tudo isso, merda para os trabalhos que eu já fiz, caralho para isso tudo!”; “Nunca te ouvi falar assim… Não acho que devas pensar dessa maneira... isso é do momento...”; “Para ti é fácil falar, porque nunca te casaste. E por isso, podes ser assim, e erguer a tua carreira, sem medo de prejudicar a tua vida pessoal, porque não tens família, não tens marido ou filhos. Eu tinha... e não fui capaz de conciliar as coisas...”

O jantar acabara de forma depressiva e fora cada uma para seu quarto. No seu quarto, parou para reflectir sobre a conversa que tivera ao jantar. Parecia que já tinha ouvido aquela conversa, noutra época, quase como se fosse outra era. Sentia vertigens. Se ele estivesse ao seu lado, diria que era da menopausa. Esse pensamento fê-la sorrir. Era uma frase típica dele. Adormeceu, não sem antes rever em sua mente o filme da noite. A conversa sobre o divórcio da sua amiga... tinha sido apanhada de surpresa… nunca se apercebera de nenhuma fricção entre ela e o marido… e, numa espécie de auto-convencimento, disse para si mesma: “ainda bem que não te casaste, assim não tiveste esses problemas”.

Os seus sonhos dessa noite é que não concordaram com ela.