Nome:

sou um pardal ateu e é isso...

sexta-feira, setembro 29, 2006

Saturação, Sim, Não

Os momentos de saturação são uma faca de dois gumes, um pau de dois bicos, ou uma moeda com duas faces.

Por um lado, deixam-nos em baixo, inibem-nos as capacidades de reacção, pioram a nossa disposição e fazem criar uma sensação de que nada à nossa volta está bem.

Em simultâneo, são um convite à reflexão, quer interna, quer externa. Quando estamos saturados, tendemos a descarregar em quem nos rodeia, e tendemos a tentar afastar quem e o que entendemos que não se enquadra no panorama geral. A questão é que o que não se enquadra aparentemente no que nos rodeia pode ser o nosso ponto de equilíbrio. O nosso contraponto.

Se deixarmos que a saturação se aloje em nós por muito tempo, é conveniente acharmos uma forma de a exprimir. Que não seja uma das tradicionais formas de o ser humano lidar com esse tipo de situação.

Tendemos a pensar que estamos cansados, mas o cansaço é profundo. Deixamos que esse “cansaço” se reflicta nas nossas relações, e, se temos a mente imbuída do espírito ultra-capitalista que vigora nos dias de hoje, primeiro sofrem as relações pessoais, depois as de amizade e, só no fim, as profissionais. A pirâmide invertida é um erro, claro. Não são os nossos colegas de trabalho que nos servem de encosto à cabeça todos os dias, nem quem entende o nosso choro ou um desabafo. Contudo, tentamos sempre não prejudicar as relações de trabalho, ainda que as pessoais vão ficando para trás.

É uma questão de romper o ciclo, de ter coragem de enfrentar o real problema. Isso é o mais difícil. É mais fácil ir dormir mal disposto e mal disposto acordar do que pensar que, se calhar, há pequenas e grandes coisas que devemos encarar na forma de lidar com o mundo.

Há uma obscura música dos Xutos & Pontapés, denominada “A Velha Canção da Cortiça”, que, a dado passo diz:

“No ciclo da produção
Acelera-se o consumo
Para dar a sensação
De que esta vida tem rumo

E tudo, tudo, se repete
Seja em nove anos ou num só dia
E só nos velhos se reflecte
O extorquir da mais valia

Vai, da roda sai
Rompe o cerco e vai
Quebra o ciclo e sai”


Trata-se disso, de romper o ciclo, para não terminar como o personagem principal do livro “1984”, naquele universo que tendemos a identificar com os regimes totalitários, mas que, cada vez mais, se assemelha às nossas “desenvolvidas” sociedades ocidentais.

Romper com o velho implica criar um novo paradigma. Mas, primeiro, as nossas estruturas mentais têm que criar a necessária flexibilidade que nos permita albergar esse novo paradigma, enquanto o velho é expelido. Senão, iremos rejeitar esse paradigma, mesmo que seja dele que necessitemos.

Sim, é sempre mais fácil eliminar o diferente, afastar quem achamos que nos está a perturbar o mundo. Talvez até seja a primeira reacção. Quantas vezes não evitamos os amigos que nos dizem as verdades mais cruas e procuramos aqueles que concordam acriticamente com tudo o que digamos? Isso para tentar insuflar artificialmente o nosso ego, tentar fazer aumentar o nosso amor próprio, em vez de fazermos o oposto. Se alguém nos ouve e não concorda e expõe a sua discordância, é alguém que mostra que nos ouviu, é alguém que se preocupa o suficiente para nos apontar o que pensa não estar bem e é alguém que tem a coragem de o assumir.

Todos fazemos asneiras na vida. Uma das maiores é pensarmos que a saturação é algo como o cansaço. O cansaço pode se resolver com umas férias em que nada se faça. A saturação lá continua. E, muitas vezes, estamos saturados do que fazemos e não de quem nos rodeia. Mas é mais fácil mandar borda fora as pessoas que nos apontam o dedo do que repensar a nossa relação com o trabalho e o mundo.

Devíamos todos viver mais devagar, sem a obsessão da velocidade, com mais tempo para quem nos rodeia e para pequenas coisas que fizeram parte da nossa existência durante milénios, como longas conversas e menos tempo para problemas e ambições e projectos que configuram personalidades cada vez mais individualistas, egoístas e sós.

Como dizem os Titãs, na sua música Epitáfio

“Devia ter complicado menos, trabalhado menos
Ter visto o sol se pôr
Devia ter me importado menos com problemas pequenos
Ter morrido de amor
Queria ter aceitado a vida como ela é
A cada um cabe alegrias e a tristeza que vier
O acaso vai me proteger
Enquanto eu andar distraído
O acaso vai me proteger
Enquanto eu andar”



Pensemos bem e tentemos levar a vida de forma mais distendida…