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sou um pardal ateu e é isso...

domingo, outubro 08, 2006

Quem muito corre se cansa

Em caso de incêndio quebre o vidro, se quebrar o vidro e se cortar, sangrará. Para estancar o sangue use um garrote e para desinfectar a zona, água oxigenada e mercurocromo. Se apertar demais o garrote, poderá parar a circulação. Para retomar a circulação, massaje a zona. Ao massajar a zona, poderá danificar a pele. Danificando a pele, utilize produtos de beleza ou vá a um cirurgião efectuar uma plástica. Para pagar essa despesa tem que trabalhar. Para trabalhar tem que ter saúde e tempo. Saúde não tem, queimado, cortado e com má circulação. Tempo? Terá tempo? Quem tem tempo? O tempo não se troca, não se negoceia. Parece, parece que sim quando somos novos, parece. Parece que o tempo dá para tudo. Eu tenho tempo para todas as coisas que quero fazer, tanto tempo tenho que não faço nada. E não fazendo nada, fico cansado de nada fazer. O que leva à necessidade de descansar. Descansar sem saúde ainda é possível e pode ajudar a recuperar. Mas, se não há tempo, como arranjar o tempo para descansar?
Vem daí mais um projecto, vem daí mais uma hercúlea tarefa, mais dias em que o horário de oito horas é estendido, em que se entra mais cedo, se sai mais tarde e ainda se leva trabalho para casa. Dias em que comemos o tempo junto com a refeição e a televisão ligada, comemos o tempo junto com os filhos famintos. Não de tempo, mas de afeição. Não há tempo, mas há uma consola, um computador, vai brincar para o quarto e não me chateies, não tenho tempo, tenho aqui umas coisas para tratar, para a semana vou para fora, sim, querida, eu sei que estou sempre a ausentar-me, são só 3 semanas desta vez, é importante, tu sabes disso. Eu trago um presente para os miúdos, não te preocupes, não me esqueço, o que é que a Rita gosta?, som, claro, eu trago, e não me esqueço de ti também, apesar de ser sempre tudo a correr, e depois aqueles jantares, eu sei, eu tento ligar, tu também não tens tempo, tens tanto para fazer, no escritório as coisas estão complicadas, ainda assim tivemos sorte em ter este ATL aqui perto, e com o horário de funcionamento alargado. Nas férias vamos a Veneza, tem de ser em Agosto, dá jeito aos dois e também ao Marco e à Carla, eles vêm com a gente este ano, não é?
E a circulação continua má, o sangue ainda não parou, mas não há tempo para ver isso, a noite é tão bonita, os prédios com as luzes acesas, ontem almocei com o Sérgio. Ele não anda lá muito bem, acho que o casamento dele está mal há já algum tempo e, além disso, o pai dele está com cancro na próstata, coitado, ainda não é assim tão velho, a mãe dele anda desconsolada, e eu imagino a situação dele, claro que nessas alturas apela-se sempre para o lado positivo das coisas e eu lembrei-lhe do quanto ele tinha sorte a ascender a Administrador da empresa, ele sorriu-me de forma amarga e disse “sorte e dor de cabeça”, eu percebo, tira-lhe o tempo, mas um homem tem que trabalhar, e eu aproveito o trabalho para viver, eu realizo-me tanto no que faço, há quem me chame de viciado, não é uma questão de vício, as pessoas não entendem que têm que ser assim, o mundo hoje é assim, trabalhar até morrer, ficar por cima para não ficar por baixo, não se pode parar, e eu até gosto do que faço.
Mais um Natal, a minha mãe está num lar, e eu e a Júlia achamos que era um grande incómodo trazê-la para casa, assim é menos trabalho, e eles no lar cuidam bem dela, a Rita está quase na faculdade agora, como o tempo passa, ela anda distante, mas ainda é a minha menina, eu sei que não tenho parado muito em casa, mas no Natal estou sempre presente, nas férias mais ou menos, eles nem sempre passam as férias connosco, já nem me lembro bem quando foi a última vez que o Paulo veio com a gente, lembras-te querida, ainda o sangue corria pelo corte da pele, agora são umas gotas esparsas, a faculdade à porta, temos sempre o fim de semana para fazer amor, durante a semana é sempre difícil, chegamos ambos cansados, e eu gosto muito de ver os filmes do canal de cinema da televisão por cabo, e tu deitas-te no quarto a ver a novela e o concurso, às vezes adormeces, também já me aconteceu a mim, isto quando um de nós não tem que trabalhar ainda mais.
A Rita casou e fizemos uma festa de arromba, o Paulo foi estudar para outro país e por lá ficou, o trabalho não corre lá muito bem, já não me desloco tanto ao estrangeiro porque há contenção de despesas, e tu, minha querida, tu andas com um ar abatido, devias consultar um médico, se calhar duas semanas de férias para um cruzeiro calhavam muito bem, no fundo não temos do que nos queixar, gozamos bem a vida, boas casas fomos tendo, bons carros, boas roupas, dinheiro para despesas, férias em hotéis dispendiosos e bem situados, nos mais exóticos lugares, alguns deles hoje interditos, mas é bem verdade que o sangue já não corre como dantes, nem sempre tivemos muito tempo para passarmos juntos, mas tu sempre foste tão compreensiva, e já falta pouco para me reformar e podermos viver à larga e fazer o que sempre quisemos e que nunca houve tempo.
Agora tenho tempo, tenho tempo, a empresa acabou por me mandar embora, mas com uma choruda indemnização, o problema é que tu, minha querida, tu tinhas que adoecer logo nessa altura, aqueles enjoos não eram normais afinal, e não te valeu de nada a operação, e eu senti como nunca tinha sentido que o tempo passara e eu mal te conhecera e deixara esmorecer a paixão, e deixara soterrar o amor em mais uma reunião, em mais um projecto, deixara de tocar o teu corpo com frequência e de sentir o teu abraço todos os dias, não houvera tempo e ainda hoje não sei qual era o teu prato favorito, que parte do frango preferias, qual o cantor que mais admiravas, tudo porque não tive tempo para estar contigo e te perguntar, estar contigo e te acarinhar, eu estava contigo e pouco falava e me concentrava em tanta coisa que não te dava um afago, que nem era por mal, mas era porque o tempo só dava para mim, e agora que estou só e o tempo sobra sinto a falta do outro tempo, do tempo que gastei com as minhas coisas, sem o gastar comigo, sem o gastar contigo, e apenas no teu leito te vi e me senti assim, e agora finjo que vivo, só que o incêndio que dentro de mim ardia já se extinguiu há muito tempo, e o sangue parou de correr.
Eu vivi como bem quis e entendi, mas o que eu queria e entendia era bem diferente do que eu precisava. Eu precisava de tempo. E sempre achei que tinha tudo. No final, sobrou foi nada.