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sou um pardal ateu e é isso...

segunda-feira, outubro 23, 2006

Comentários Sobre um E-mail Recebido

Recebi hoje na minha conta de correio electrónico, uma dessas cartas reenviadas em série, com uma apresentação muito bonita em power-point, cheia de criancinhas (não, não tinha a ver com pedofilia nem palhaçadas). Associado a cada slide com as criancinhas aparecia uma frase feita sobre ser feliz. Sim, reparem bem no truque psicológico, a cada frase associar uma imagem que transmita a sensação de inocência, para ajudar a entrar na mente essa associação de ideias. Essa habilidade, utilizada no marketing há largas décadas, está ao alcance de qualquer um. Utilizar a imagem para fazer passar uma série de ideias. E como desconectar a felicidade da infância, sobretudo a de mais tenra idade. Nas nossas representações mentais, é difícil conceber infelicidade aos dez meses ou mesmo aos dois anos, pois a memória do nosso consciente é muito vaga sobre esses tempos. Então, se não nos lembramos de momentos de infelicidade, é por que éramos felizes. Essa ideia está longe de estar correcta, mas não é isso que pretendo aqui discutir.

Pretendo mesmo discutir as frases com as quais os meus olhos se depararam, a ponto de ter revisto a apresentação novamente para me certificar que não tinha lido mal.

Comecemos por esta: "Ser forte é amar alguém em silêncio" - Muito bonito, soa bem, apesar de aparecer ao lado da foto de uma criança de tenra idade que, como sabemos, está longe de estar em silêncio, fazendo um belíssimo uso dos seus pulmões. Mas amar em silêncio porquê? Porquê não expressar? Alguém que ame outrém e o diga é um fraco (seja homem ou mulher, que me perdoem os politicamente correctos, eu aqui não farei diferenciação de género, usarei apenas um dos sexos para poupar texto e ser mais prático)? Alguém que aguente amar outra pessoa e não o transmitir por medo de levar um 'não' é forte? A que propósito? Alguém que é correspondido e não transmite o que sente a quem está ao lado é forte ou é altivo? Alguém que pretende ter outra pessoa ao lado e não o diz é forte ou é medroso, ou mesmo cretino? Alguém que ama em silêncio é alguém que tem medo de si próprio, é alguém que tem medo dos seus próprios sentimentos, alguém que tem medo de amar. Isso é ser forte? O amor deve ser barulhento, deve gerar poesias, cânticos, baladas. O amor, por muito sofrimento que implique, traz em muitos momentos êxtase, alegria, carinho, afecto. Isto deve ser silenciado? Engraçado, se calhar devemos todos falar de futilidades, ou de tricas, ou de guerras, que demonstraremos ser fortes. Mas falar do amor que sentimos é sinal de fraqueza. Acho que já nem os machistas mais empedernidos assim pensam, é triste que sejam as mulheres a criar e transmitir estas supostas "verdades esotéricas e metafísicas" que em nada as engrandece. Mas vamos em frente, que há muito mais a caminho.

"Ser forte é irradiar felicidade quando se é infeliz" - Pois claro! Reparem no verbo. Irradiar. Pois bem, sendo irradiar emanar raios, os raios são energia, energia que vem de dentro. Ora, se nos sentimos infelizes, não conseguimos irradiar felicidade, por mais que tentemos ou simulemos tentar. Esta frase é de uma impossibilidade tremenda, uma contradição em si, mas deve fazer felizes todas as alminhas hipócritas que acham que nos devemos esconder atrás de nós mesmos, e que, mais uma vez, mostrar o que sentimos é sinal de fraqueza. Será isso que a Psicologia ensina, ou será precisamente o oposto? O que esta frase traz dissimulado em si é o conceito de enganar os outros, talvez como forma de nos enganarmos a nós mesmos. Além de mostrarmos o que não sentimos, o que nos configura como hipócritas, não mostramos o que sentimos, por acharmos que assim estamos mais protegidos. "Esconde-te e protege-te." Bom lema para a vida, para a vida de quem não pretende abandonar a sua caverna interior.

"Ser forte é tentar perdoar alguém que não merece perdão"- o que nos faria, supostamente, sentir em comunhão com Deus. Mas, se este, supostamente, fecha as portas do paraíso a quem não merece perdão, e se nós devemos seguir seus mandamentos, que curioso cenário... isto claro, é um raciocínio aplicável a crentes. Mas, se sairmos desta toada religiosa, convenhamos que esta é uma frase de bonito efeito, mas que não demonstra força ou fraqueza. Demonstra a capacidade de perdoar, que, contudo, deve ser bem medida. Se perdoarmos tudo e mais alguma coisa que nos façam, seremos meros joguetes neste mundo. Deve ser muito interessante dizer isto a um sobrevivente de Auschwitz, por exemplo. "Olha, pá, perdoa lá o Mengele pelas experiências médicas que ele fez em ti e aos nazis por terem morto toda a tua família". O facto de não perdoar alguém não significa que se acumule ódio contra esse alguém. Mas significa que não se está disposto a ser pisado e a continuar a sorrir alegremente como se não possuísse amor-próprio e auto-estima.

"Ser forte é esperar quando não se acredita no retorno" - Isto é como esperar ganhar o Euromilhões sem preencher o boletim. Isto não é ser forte, é ser imbecil. As pessoas até podem esperar, mas esperam quando acreditam, quando anseiam algo. Podem ser mais ou menos pacientes, mas esperam com o fito de atingir algo. Podem esperar por alguém ou por alguma coisa, mas aí acreditam em algo. Agora esperar por algo em que não se acredita, não é de quem é forte. É de quem é verdadeiramente incapaz de ir à luta. E fica à espera do que não vem, por incompetência, preguiça ou simples sonho que, por ser um sonho, impede de ver a realidade, e encarar a VIDA.

"Ser forte é sorrir quando se deseja chorar" - isto revela algum tipo de estado alterado da mente, aquilo que por vezes acontece em caso de descontrole emocional, por exemplo, num funeral de alguém de quem gostamos muito, e, por uma questão de nervos, rimos desenfreadamente, não porque estejamos contentes, mas precisamente porque não estamos bem. Portanto, ao sorrir quando se deseja chorar, ou isso é uma obrigação profissional, ou, mais uma vez, é hipocrisia, ou, em alternativa, é um caso de desiquilíbrio emocional. Seja de que forma for, é uma violência para com o nosso eu, é um afogamento do nosso "self", e é um mau indicador para as relações com terceiros, que se sentem baralhados. Mais uma vez, é uma fuga, é um esconderijo, é um exacerbar do medo, do medo de se ser o que se é, e se assumir assim perante o mundo, em vez de tentar representar um papel, um papel que achamos que é equivalente à expectativa que os outros têm de nossos actos.

"Ser forte é fazer alguém feliz quando se tem o coração em pedaços" - pode até acontecer, não acho tanto que seja uma demonstração de força, mas uma demonstração de altruísmo, ou uma demonstração de amizade ou amor. Claro que, se continuamente caminhamos com o coração em pedaços, é inevitável que as pessoas que se encontram ao nosso lado, nas mais variadas formas, se sintam afectadas com isso. Mas também lá deverão estar para ajudar. Assim como é possível que consigamos ajudar os outros, estando nós próprios em baixo. Se isso é ser forte, é que já acho discutível...

"Ser forte é calar quando o ideal seria gritar a angústia" - então, ser forte é ser mudo, ou ser incapaz de exprimir os seus próprios sentimentos. Se alguém se sente angustiado, guardar dentro de si a angústia, em vez de a extravasar, conversando com um amigo, com o parceiro, com a família, ou de qualquer outra forma, é, acima de tudo, uma desnecessária forma de infligir auto-sofrimento, é assumir que não se deve expor nunca o nosso mal estar perante o que ou quem nos rodeia. Ser forte é engolir em seco, é acumular mal-estar? Ser forte é castrar a palavra? Desde quando ser forte é a proclamação de um bem-estar fajuto e não sincero, desde quando ser forte é tornar-se um ser fechado ao exterior, vivendo em sua própria redoma, insuflando aparências? Isto é ser forte? Não, isto é ser um calhau com olhos.

"Ser forte é consolar quando se precisa de consolo" - boa desculpa para dar a quem só está habituado a receber... Confunde-se aqui o conceito de "força" com "afecto" ou "ternura". Por outro lado, repare-se neste singular facto oculto: se eu estou a consolar alguém, mesmo que eu precise de consolo, é porque esse alguém também precisa, ou estaremos perante um caso de loucura mútua. Ora, seguindo a linha de raciocínio da "sábia" frase citada entre aspas no início do parágrafo, se eu estou a consolar alguém porque esse alguém precisa, esse alguém vai me consolar a mim também, pelo que temos aqui um caso de partilha e entrega. Força?

"Ser forte é manter-se calmo no momento do desespero" - sem discordar inteiramente desta frase, diria antes que, mais que força, é um caso de inteligência emocional, é um caso de frieza. Em alguns casos pode ser também reflexo de ausência de escrúpulos, mas, vá lá, esta passa...

"Ser forte é demonstrar alegria quando não se sente" - em contrapartida, esta poderia ter saído da boca de um jumento, sem ofensa para o animal. Demonstrar o que não se sente é o que faz de nós mentirosos, hipócritas, cínicos, falsos. Como se pode demonstrar algo que não se sente, a não ser que se seja um brilhante actor, mas fora do palco ou das telas? Será querer transformar a vida, à força numa representação, numa vida virtual, num amontoado de mentiras e de receios, numa confusão em que nos percamos, em que deixemos de saber verdadeiramente o que somos, em que não saibamos mais agir naturalmente, em que sintamos necessidade de adornar ou falsear a realidade, qual Edith no seu diário, como lindamente escreveu Patrícia Highsmith? Demonstrar o que não se sente é, pouco a pouco, assumir a falsidade como o nosso estado natural, é a palmadinha nas costas do outro, em vez de lhe dizer que também estamos tristes e temos problemas. Claro que isto pode se traduzir como aparentar ser forte, mas então este remédio é o ideal para quem tanto gosta de viver de aparências. A melhor forma de se ganhar força, de nos auto-conhecermos, é assumirmos os nossos problemas e as nossas fraquezas, e não mascará-las com um sorriso de máscara.

"Ser forte é ter fé naquilo que não se acredita" - por essas e por outras é que eu, já de prevenção, comecei a acreditar em coelhos voadores que comem vacas e vão à manicure três vezes por semana. Sim, isso faz-me sentir forte, um verdadeiro cavalo de força, um motor de um foguete aeronáutico, um vulcão em explosão! Eu tenho fé numa centopeia gigante que canta óperas de Wagner e que se veste de marinheiro às quintas-feiras. Eu tenho fé em árvores galopantes, que crescem até aos 5000 metros de altura e que arrotam ao meio-dia como forma de expressar a sua gratidão por cada centímetro a mais. Ter fé no que não se acredita é desespero ou estupidez, ou ambos. Não é ser forte, é estar em permanente delírio. Aliás, é um enorme sintoma de fraqueza. Mental.

Resumindo, se queres ser forte, questiona parvoíces como esta que enviam aos incautos. E, aconselho, sobretudo, às mulheres, por formação cultural, a serem mais críticas no tratamento deste tipo de informação. Podem dizer que estou a ser machista, ou parcial, mas acho sintomático que todos estes tipos de e-mail que eu recebo, assim com umas frases feitas mal cortadas e ainda pior cosidas, me sejam enviadas por mulheres. Pode ser devido à forma fast-food como as consomem, mas nem isso, no meu caso, evita um difícil digestão, com um provável vómito pelo meio.

Ser forte, afinal, até pode passar por ser reflexivo e crítico e não ter pejo em se conhecer a si mesmo.

Ou então, e terminando com um pouco de ironia, "ser forte é estar seguro pelas mãos num precipício e bater palmas quando chega alguém para nos salvar"

4 Comments:

Blogger filipelamas said...

O problema das frases feitas é mesmo esse: até podem encerrar verdades, mas de tão gastas, muitas vezes, já não há pachorra... Correndo o risco de cair em mais um cliché - ao fim e ao cabo ninguém pode dizer deste cliché não beberei -, cada um de nós, à sua maneira, encontra uma forma de ser feliz. Sem que se torne necessário definir o que isso seja. Neste domínio, como em tantos outros, definir é reduzir.

9:40 da tarde  
Blogger Carina said...

Concordo com tudo, em género número e grau

9:41 da tarde  
Blogger Carina said...

Concordo com tudo em género número e grau e cansa-me ter de ver esses e-mails intermináveis cheios de felicidade.
Mas claro isto é a opinião de uma "moura" que se arma em semi-jornalista por isso...

9:42 da tarde  
Blogger Furnle Turnle said...

Não impeço "as mouras" de emitir opinião, até porque, quando o fazem por escrito, não se ouve o sotaque :p

10:19 da manhã  

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