Reflexão Sobre a Cegueira
Em baixo do telhado não chove, excepto, talvez, naquele rebordo do patamar em que está a goteira, a goteira pinga e se alguém se coloca lá em baixo acaba por molhar a cabeça, quer dizer, pode também molhar os pés ou a barriga se esta for proeminente, ou as mamas, se for uma mulher bem guarnecida, como o meu almoço foi bem guarnecido de legumes.
Não, não chove, embora se possa observar com cuidado e calma a cadência das pingas que caem, a uma velocidade variável, ora empurradas pelo vento, ora deixadas à sua sorte, embora isso seja indiferente para quem olha, é apenas mais uma gota, tanto faz se cai no capôt do carro, se cai no chão, em cima da árvore, ou se baila até se perder da nossa vista.
Falando em vista, tenha-se em conta que o pior cego pode não ser o que não quer ver, mas este é o mais difícil de tratar, pois é aquele que se rejeita a aceitar o diagnóstico, não se apercebe da sua cegueira, continua a cavalgar na sela já desapertada e gasta, com os freios corroídos, e em cima de um cavalo que tem pernas de pau.
O cego não tem tempo nem paciência para apreciar uma gota de chuva, nem tão pouco um pássaro a cantar, porque está envolto na sua cegueira que, com frequência, é uma cegueira que causa deslumbramento. O cego envolve-se em cada vez mais coisas, vai enchendo o seu tempo com grandes coisas que não passam de pequenos nadas, vai tendo uma vivência social cada vez mais fútil e vazia, vai preenchendo os seus tempos livres com ocupações que lhe permitem nunca parar para pensar e observar que cegou, o que causou a cegueira e como dela sair.
Para o cego, os que o rodeiam é que vêem mal, é que não compreendem, é necessário, tem mesmo que ser assim, não se pode parar, é só durante uns tempos, nem sequer é um glaucoma, nem cataratas, é mesmo uma cegueira completa, que o deixa olhar, mas nunca ver, e pensar que assim é que está certo. O cego que cria o seu ambiente de contactos sociais para levar adiante mais um projecto, para rir, para não se sentir só, para fugir. O cego foge, foge por uns dias, foge para não aceitar a realidade, para não enfrentar a solidão em que a sua cegueira o foi imbuindo. O cego vai preenchendo os tempos, numa incessante fuga para a frente. Na frente, de forma invariável, está um penhasco ou uma parede de granito, mas o cego não vê. O cego vê deslumbramento e é nos efeitos da sua cegueira que pensa vir a encontrar a sua auto-estima. E encontra-a, embora de forma fugaz, porque esta auto-estima é curta, não chega para lhe restituir a visão, para vislumbrar que já não está debaixo do telhado, nem sequer já se ouve o barulho da goteira a pingar.
É só mais um bocadinho, tenta entender, diz o cego a cada não invisual que o rodeia, que se deprime ao ver o cego que não se apercebe que está cego, que tem necessidade de se afastar para não ver os resultados da cegueira, para não ouvir o estranho silêncio no intervalo das gargalhadas dos outros cegos que rodeiam o cego. Os cegos unem-se em torno de um objectivo comum: ignorar a sua cegueira, e continuar a desconhecer onde caem as gotas de chuva. Levam assim adiante os seus planozinhos aos quais atribuem uma descomunal importância, falam das suas pequenas quezílias como se isso fosse uma declaração de uma guerra nuclear e competem por um lugar ao sol, sem darem conta que esse lugar existe, com um martelo na mão a partir pedra e o sol não tem piedade.
Nem nós devemos ter piedade desses cegos; eles assim são porque assim quiseram ser, porque as suas projecções da vida os levaram a desligar-se da mesma, vivenciando uma espécie de existência virtual, paralela a algo que eles sabem estar dentro deles mesmos, mas que não se deixam ver, porque a cegueira os dominou.
Pode ser, pode ser que quando os rios secarem ou estiverem poluídos, os cegos se dediquem a beber dinheiro e a comer fama, a saborear o sucesso ou os resultados da sua carreira, pode ser que os cegos coloquem todos os seus diplomas e resultados operacionais no prato e acompanhem com uma salada de reuniões e pudim de projectos. Para terminar, nem chá nem café, que água não haverá, mas um simpósio. Em pó. Pois a chuva, essa, terá cessado de cair lá fora, mas toldar-lhes-à a alma até ao momento final. Ainda que sob a forma do eterno nevoeiro em que viverão, nunca mais se dissipando ou, mesmo que haja uma esperança, é necessário que os olhos se abram e que eles reaprendam a ver.
Deixemos, deixemo-los assim: no final, serão eles a pagar a conta. Do restaurante e do oftalmologista.
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