Nome:

sou um pardal ateu e é isso...

segunda-feira, março 12, 2007

Admirável Mundo Novo (o Sr Huxley que me perdoe a pilhagem)

Não eras forte nem particularmente bonito. Não tinhas uma silhueta invejável nem sequer aquele charme que caracteriza os sedutores. Não tinhas pretensões de seres o que não eras nem aquelas ambições que tanto fazem as delícias das mulheres. Não te pelavas todo por um bom carro, não te importavas com uma boa casa e dispensavas bem um restaurante bem decorado, pois o que te preenchia era boa comida.

Não tinhas uma única característica que me agradasse, que combinasse comigo, que eu te dissesse que era afim a mim. No entanto, por artes que não tenho o condão de explicar, eras especial. Eras especial e algo gravaste em mim em algum lugar que não consigo encontrar. Às vezes, parece que não estás lá, parece que nunca estiveste, mas há momentos em que me apercebo que a tua presença é uma constante, como se eu nunca estivesse só.
Nessas alturas em que te revelas, fazes-me recordar momentos que eu nem sonhava que haviam existido, fazes-me lembrar de eu e tu deitados sobre o mesmo leito, por vezes abraçados, como se o mundo se fundisse em nós. Como quando me revolvias o cabelo ou eu te tocava no rosto.

Partiste e eu julguei que era apenas um arrufo. Mas havias partido de vez. A início, o alívio, depois uma estranha indefinição, e por fim, a tua imagem, de tantas vezes me teres feito chorar e de tantas vezes te ter eu feito sofrer. Partiste, e eu pensei que apenas foras um raio de luz, que apenas vieras dar um vislumbre de ti. Partiste e avisaste da tua ida. Mas eu não quis ouvir, eu nunca quis ouvir. Eu pensei sempre que ficavas, que não te desligarias de mim nunca, porque eu era especial. Nem dei conta de que tu também o eras, nem dei conta de me perder em mim mesma. Defini as minhas verdades e a elas me agarrei até ao fim, até ao último instante, aquele em que me deixaste só, sem eu entender bem o que estava a acontecer.

Eu estava imersa em mim e não medi o impacto do teu acto. Preocupara-me tanto em te submeter a mim, em querer que me amasses como eu sou, que nem me preocupei em te amar como tu és. Tanto quis ter de ti, que, por tão diferente seres do que sempre sonhara para mim, nem te quis dar o que de mim querias receber. Sempre achei fazer o certo e, talvez por isso, te ouvisse, sim, ouvia-te, mas sem te entender. O mundo parecia uma massa muito mais densa quando falavas, e eu não queria a densidade, eu queria que deixasses os problemas do mundo de lado e olhasses para mim, para que visses como eu sou bonita, quando eu própria apenas te falava do meu mundo, que eu entendia ser o ideal, e que nunca abandonaria, e para ti não olhava. Ou olhava sem te ver.

Partiste e a tua partida foi o que mais me marcou. Apenas depois de ires, muito depois de ires, comecei a ouvir a tua voz, a me recordar de tuas palavras. Vivi muitos momentos com a cabeça em ti, passei por situações em que sentia que me estavas a observar, como se soubesses que um dia me ocorreriam. Podias estar longe, mas quando, por vezes, tu me abandonavas, como se tivesses desaparecido de mim, eu encontrava-te num canto meu, para o qual eu nunca tivera a coragem de olhar antes.

Nunca gostei de admitir os meus erros, reconheço, sou orgulhosa, gosto de ultrapassar as situações sem dar parte de fraca, porque sou insegura e raios te partam se tu não vislumbraste sempre a minha insegurança. Tive, tive medo. Muito medo. Ou julgas que era fácil aceitar algo como tu, que eu nunca entendi bem? E, além de não entender, diminuía.

Durante anos pensei que partilhar era tem alguém ao lado com quem falar sobre os nossos sucessos e que nos suportaria nas alturas más. Ensinaste-me, ainda que de forma enviesada, que partilhar é, mais que tudo, o que podemos fazer pelos que estão ao nosso lado. Tu querias mostrar que partilhar é dar um abraço a quem achava que partilhar era dizer que tinha sido promovida ou cujo trabalho tinha sido reconhecido. Eu própria queria que tu fosses reconhecido, porque te achava com valor, mas nunca parei para ver de onde era originário o valor que eu pensava tu teres. Tentaste partilhar comigo a tua profundidade, eu apenas queria a superfície. Terei feito sempre isso sem me dar conta?

Desconheço tudo sobre ti. Onde te encontras, o que fazes. Quem és. Mas sinto falta do teu ar desmazelado, do teu ombro nos momentos difíceis, da tua lucidez quando tudo se aparenta a um jardim florido, da tua amargura crítica perante o que nos rodeia, do teu companheirismo, e do teu calor. Sinto falta das tuas pernas cruzadas nas minhas. Sinto falta de acordar ao teu lado numa cama apertada e não querer ir trabalhar, querer ficar assim, apenas, sem dizer palavra, como tão poucas vezes ficamos.

Tenho muito, hoje. Tenho. Mas não te tenho a ti, de quem gostei sem querer ter. Gostaria, pelo menos, de te rever, que tomássemos um chá, ou fossemos jantar. Gostaria de, ainda que por umas horas, sentir que, afinal, não foste embora, que todo este tempo que passou, na verdade, não passou, foi apenas uma noite mal dormida, um estranho sonho que se apoderou de nós, mas nos largou no despertar de uma manhã primaveril, morna e aromática.

E que, ao acordar, estavas ao meu lado e eu te abraçava enquanto dormias. Para que não fugisses, para que não saísses para ir trabalhar e que, por um dia, eu me entregasse em teus braços e me perdesse de mim, para que eu soubesse, por uma vez, o que era ser tua. Ser tua de verdade.