Stress, Depressão & Síndrome de Pânico

Nome:

sou um pardal ateu e é isso...

terça-feira, agosto 22, 2006

Exangue

Eis que encarnara o martírio,
Fazendo uma ponte até ao delírio
De tão lúcido se tornara plano
Trotando no pasto qual garrano
Nem de propósito, nem por desleixo, se poderia designar uma questão de métrica
Apenas fonética
Avessa à ética
tal como o pêlo saliente no queixo.
Faltava o que ainda falta:
A sabedoria plácida
Sobrava a palavra ácida
A sentença que (se) exalta

Reles trova que troa
Pedaço de pão que se esboroa
Nuvens fumegando
Formigando
Esmigalhando
O que endeusas à toa

Os lamentos se confundem na penumbra
E desembocam na opulência dos gemidos,
Em simultâneo inertes e garridos
Desse galo algoz que nos assombra.

Desafio o recato e desacato,
Esse regato que não sobrepuja um fio
De liquido acrílico e putrefacto
Alisas a gravata deste facto
Expeles o rudimento do teu tacto e vomitas excreções
Apresentas lacerações
E desmaias quando te tiram o pio.

Convenhamos que és inconveniente
Pausas entre o picante e o ardente
Se te classificasses em língua precisa
Jamais te denominarias poetisa
Tuas rimas são actos falhados
Queixumes embotados
Desabafos de fel e candura
Garatujas no papel a amargura

Abandona teus desígnios antigos e remelentos
E aceita que teus odores são pestilentos
Causa a revolta da revolta,
Dessa energia que anda envolta
No áspero e decrépito celofane
Na tua tumba que alguém profane

Grita a dor do silêncio ausente
E dói o silêncio do grito presente
O que tanto te faz ir em frente,
Senão o desejo daquilo que se sente
Abraça-te para me sentires
Na tentativa de te redimires
E despe o teu corpo de preconceitos
Desinfecta tua alma dos ideais desfeitos

sexta-feira, agosto 18, 2006

Queixa das Jovens Almas Censuradas - Natália Correia

Dão-nos um lírio e um canivete
e uma alma para ir à escola
mais um letreiro que promete
raízes, hastes e corola

Dão-nos um mapa imaginário
que tem a forma de uma cidade
mais um relógio e um calendário
onde não vem a nossa idade

Dão-nos a honra de manequim
para dar corda à nossa ausência.
Dão-nos um prémio de ser assim
sem pecado e sem inocência

Dão-nos um barco e um chapéu
para tirarmos o retrato
Dão-nos bilhetes para o céu
levado à cena num teatro

Penteiam-nos os crâneos ermos
com as cabeleiras das avós
para jamais nos parecermos
connosco quando estamos sós

Dão-nos um bolo que é a história
da nossa historia sem enredo
e não nos soa na memória
outra palavra que o medo

Temos fantasmas tão educados
que adormecemos no seu ombro
somos vazios despovoados
de personagens de assombro

Dão-nos a capa do evangelho
e um pacote de tabaco
dão-nos um pente e um espelho
para pentearmos um macaco

Dão-nos um cravo preso à cabeça
e uma cabeça presa à cintura
para que o corpo não pareça
a forma da alma que o procura

Dão-nos um esquife feito de ferro
com embutidos de diamante
para organizar já o enterro
do nosso corpo mais adiante

Dão-nos um nome e um jornal
um avião e um violino
mas não nos dão o animal
que espeta os cornos no destino

Dão-nos marujos de papelão
com carimbo no passaporte
por isso a nossa dimensão
não é a vida, nem é a morte


(Adoro este poema...)

quinta-feira, agosto 10, 2006

Um Olhar Sobre o Outro

Receber convidados em casa tem alguns incómodos naturais, provocados pela perturbação do dia a dia, da rotina instituída, mas também permite fazer uma melhor observação daquilo que somos e confrontarmo-nos com o nosso egoísmo (ou talvez egocentrismo) diário. Se dele saímos ou não, se fazemos uma auto-crítica, e se algo tentamos corrigir, é sinal que nos aperfeiçoamos. Se assobiamos para o lado, é mais uma forma de sermos crescentemente incapazes de entender os outros e de nos enredarmos em torno de nós mesmos, vivendo, ainda que de forma inadvertida, como se fossemos o Sol no firmamento. A única questão é que, se todos fossemos assim, então o céu não seria mais que um amontoado de estrelas a incandescer, gerando uma temperatura infernal e sendo impossível de habitar.

Receber um convidado implica saber partilhar o nosso espaço, a nossa comida, os nossos bens, os nossos hábitos, os nossos desmazelos, as nossas manias. Um convidado pode ser mais ou menos observador, mas dificilmente ele se assemelhará a nós em tudo. Pode acontecer que algo que julgamos como perfeitamente natural seja, para o convidado, algo sem sentido. Isso não significa que não tenhamos direito a ter as nossas pequenas idiossincrassias. Significa é que teremos que ser capazes de as avaliar e, eventualmente, concluir que algumas são ridículas, outras são engraçadas, outras são insensatas e outras confortáveis.

No entanto, é prudente lembrar que o convidado também tem os seus hábitos, e que convém também entendê-los antes de os criticar. Imaginemos que convidamos alguém para nossa casa que gosta sempre de tomar banho antes de jantar. É uma mania. Pode nos ser estranho. Mas porque razão haveremos de dizer que não? Causa algum grande estrago em nossas vidas? Então, ele que tome o banho que lhe sabe bem.

Outro tipo de situação é quando o convidado surge em época de trabalho. Não temos tempo para andar com ele para tudo que é lado. E temos os nossos afazeres, pessoas para visitar, sair mais tarde do trabalho um dia ou outro, etc. E agora? Crie na sua mente a situação de receber alguém em sua casa e, num dado dia, ser convidado para jantar em casa de uns tios. Dilema: o que fazer? Há diversas opções: ou se diz aos tios que temos gente em casa, e se há algum problema em que a pessoa possa ir (se tal for do interesse dela), ou deixamos a chave de casa ao convidado para que ele possa vir à vontade e se acomodar, ou pedimos a alguém da nossa confiança que faça companhia ao convidado (mais lógico se o convidado for um turista e quiser passear acompanhado). Parece óbvio e elementar, não parece? Parece…

E que tal se nos virarmos para o convidado “Olhe lá, hoje só apareça cá à meia-noite porque eu não vou jantar em casa. Até logo!”? É bonito isto? Não, é feio, é de má educação, revela falta de respeito e desprezo pelo ser alheio. Nesse momento, apenas nos preocupamos com a nossa pessoa. Recebemos um convite para ir jantar, vamos e a pessoa que hospedamos em nossa casa, que se arranje. Se nos colocarmos no lugar do outro, sem dúvida que nos sentiremos desconfortáveis e magoados. Acontece que, colocarmo-nos no lugar do outro implica olhar para ele e termos a noção que cometemos erros e que os deveremos corrigir. E isso implica fazer cedências naquilo que somos (ou pensamos ser).

A pior parte é quando fazemos isto com alguém com quem temos à-vontade. Por razões estranhas que o nosso cérebro confabula, somos capazes de ter mais cuidado e evitar fazer isto com alguém com quem conhecemos mal, mas com um grande amigo, com o parceiro ou um familiar, tendemos a errar mais. Pelo facto de termos aquelas pessoas presentes, e acharmos que elas estão presentes naturalmente, tendemos a não as tratar correctamente. Achamos que não há mal nenhum e não damos conta que as ferimos mais do que a um desconhecido, que não tem laços afectivos que o liguem a nós.

Depois não somos capazes de perceber um olhar triste, não reconhecemos um sorriso ou uma observação melancólica, porque apenas nos preocupamos com o nosso mundinho. Será mesmo correcto alguém se virar para um amigo que recebemos em nossa casa e dizer: “Hoje chego tarde, vais ter que esperar em algum lugar por mim.” É nosso amigo? Se não o pudermos levar (e nem sempre poderemos), então que lhe entreguemos a chave do nosso lar. Obrigá-lo a fazer qualquer outra coisa apenas porque nos dá jeito é egoísta e mesquinho.

O ser humano nunca viveu tanto em solidão quanto hoje. Pudera: nunca tomou atitudes tão mesquinhas e pequeninas quanto a aqui descrita como nos nossos dias. Mudar o mundo para melhor é mudar os nossos pequenos gestos errados. É sermos capazes de pensar nos outros primeiro. Talvez isso nos magoe, a nós e a eles, muito menos. Mas não é assim tão impossível. Embora seja difícil.

O egoísmo é cómodo. E solitário.

quarta-feira, agosto 09, 2006

Um Fim é Um Fim

“Os sonhos vêm, os sonhos vão… o resto é imperfeito”
(Há Tempos – Legião Urbana)

O ser humano criou em si a ilusão que, a cada fim, corresponde um recomeço. Talvez seja uma forma piedosa de aceitar os acontecimentos mais ou menos abruptos que criam sensações de amargura e dor. É também evidente que este tipo de frase aplica-se com maior ênfase no caso de um fim não desejado, ou, pelo menos, um fim dorido.

Um fim é um fim, e a exegese desse fim é apenas isso: o que levou ao término? Uma doença, uma ruptura, um acidente, uma viagem…

O fim pode também ser uma salvaguarda do que somos, uma forma de respeito e recuperação pelo nosso amor-próprio. Muitos de nós já passaram por relações amorosas em que se denota não existir suficiente afinidade com a pessoa amada.

As pessoas tentam se aproximar, mas raras vezes é fácil e muitas vezes não é possível. A solução: depende. A ausência de fórmulas providenciais é a resposta mais honesta. Como é honesto dizer também que, quando tudo falha, o mais acertado poderá ser nem voltar a tentar. Quando ambas as pessoas tentam, quando ambos se esforçam por levar algo adiante e mesmo assim não conseguem se entender, estarão a dar o seu tempo por perdido. A prossecução do que sentem e almejam apenas carrega em si um enorme incómodo e um fardo da dor. A tensão não cessa, nem com aproximações, nem com afastamentos. A tensão permanece, o saber-se que o outro que lá está nos faz pensar “o que tenho eu a ver com esta pessoa?”. Tudo isso acaba por ir se tornando mais denso. Há necessidades elementares de, pelo menos, um dos membros do casal, que não estão a ser satisfeitas, o que gera uma certa tristeza e apatia.

A ruptura acaba, mesmo que dolorosa, por ser a forma mais racional de sobrevivência de ambos, antes que sejam atirados para um redemoinho interno. O cansaço, a busca de diferentes realizações na vida (e, até, de realizações incompatíveis), o facto de se encarar a vida de forma mais contemplativa ou menos, de se ter maior ou menor apego a bens materiais, faz com que o sentimento se dilua em outro tipo de insatisfações.

Começa a pairar um certo azedume no ar, começam as diferenças a pesar mais. Um gosta de música triste e o outro de música alegre. Um gosta de TV e o outro de leitura. Um gosta de filmes que sejam sucesso de bilheteira, o outro de obras que muita gente não ouviu sequer falar. Um gosta de acordar cedo, o outro de dormir até tarde. Um faz do almoço a sua principal refeição, o outro o jantar. Um prefere o sossego, o outro a agitação. Um prefere o campo, o outro a praia. Um sente-se cansado todos os dias, o outro não.

Se ambos não se sentirem sitiados com tudo isto, será de estranhar.

Um fim é um fim. Não necessitamos de o adornar com nada, nem é pelo facto de o fazermos que ele se transforma em outra coisa.

terça-feira, agosto 08, 2006

A Carta Que Nunca Receberei

Meu amor,

Tentarei que a inspiração me bafeje, ao escrever estas linhas para ti.

Linhas escassas para te dizer o quanto me sinto bem em te ter ao meu lado.

Sei que nem sempre te compreendo, e reconheço que, em algumas dessas vezes, é por não envidar os melhores esforços nesse sentido. Não me enganarei muito se te disser que não és fácil de conhecer, teus mistérios intrincados me fazem, por vezes, sentir que não estás sempre comigo, ainda que estejas junto a mim. Tu não és apenas um desafio, és um acalanto para meu corpo e minha mente.

Não te imagino longe por um dia. Quero sempre ouvir o som da tua voz, que por vezes ecoa. Sim, ouço-ta, mas é como se de mim saísse, se espalhasse em meu redor em harmoniosas notas musicais e me embalasse a alma.

Tamanhas vezes desvalorizo aquilo que, em ti, tem mais valor. Mas, amor meu, como, em meus mais profundos estados de solidão, careço de teu afecto. Afecto que me deste e que julgava eu retribuir. Crê que hoje sei que me enganei, e que tentarei corrigir meu erro. Nem sempre levei em conta tua inusitada sensibilidade, e não estive disponível muitas vezes para te dar o que te faz feliz. E, sem te fazer feliz, que me adianta pedir para que partilhes a vida a meu lado? Procuras a tua paz interior em pequenas coisas diárias, não lhes reconhecendo o peso ou a fealdade da rotina. Repetes o mesmo acto, o mesmo gesto, com o mesmo prazer que uma mãe afaga a cabeça do filhote num momento de languidez.

Senti-me perdida em mim, e tua vinda agudizou o processo. Me obrigaste a encarar a realidade, eu, que, sem me dar conta, me adoro perder em fantasias. Não és mais isolado do mundo do que qualquer um de nós, apenas o absorves de forma diferente.

Estar a teu lado é difícil, acredita, mas não estar é muito mais. Por muito que despreze teu corpo na cama, me arrepio quando vejo a cama sem teu corpo. Por muito que te imagine como uma ideia, fico vazia sem a sua concretização. Foste-te tornando mais que parte do meu espaço: foste te definindo como o meu próprio espaço.

Vem para mim, para que eu te dê o que precisas, e que com isso te permita transportar a paz diária e me sentir feliz por saber que te faço feliz. Que te faço feliz porque de ti sei cuidar.

Vem sentir o meu calor, eu também sei flamejar. Vem me abraçar, te encontrar dentro de mim, da mesma forma que eu agora entendo ter que vasculhar o teu interior para buscar e afagar os quase invisíveis pedaços da tua alma que aguardam pelo meu toque.

Da tua

quarta-feira, agosto 02, 2006

A Ti

A ti, que estás aí, cujo sorriso neste momento se encontra enclausurado, submerso em trabalho.
A ti, que julgas faltarem as forças, que na verdade em ti estão, para continuar a caminhada do dia a dia.
A ti, que choras em silêncio, por te sentires só, quando só nunca estarás.
A ti, cujo eixo de rotação sofreu uma alteração, que ainda não vês a nova inclinação, mas sentes a velha já não ser tua.
A ti, que perdeste certezas e esperas por novas certezas, sem ainda saber que a vida é recheada de dúvidas.
A ti, que lambes as feridas, sem as sentir fechar, conquanto a cicatriz já espreite.
A ti, que mergulhaste dentro de ti para te auto-conheceres, e cujas respostas às tuas perguntas são diferentes das que imaginavas.
A ti, que esperas afeição, que necessitas de aconchego, que ofereces um abraço.
A ti, a quem mais?

A ti, que esta noite me invadiste os sonhos e os transformaste, que sábias palavras sussurraste, que me apontaste um novo caminho.
Esta noite me chamaste e minha mão agarraste, e sorriste e saltaste. Algures num futuro passado, em que filhos meus geraste. Esta noite tu gritaste, não de fúria ou dor, mas com convicção. Esta noite tu me amaste, como jamais houveras amado. E tuas palavras sobre amor e entrega, não eram apenas retórica ou metáfora. Elas eram actos e gestos.
Esta noite, em algum lugar, tu me sentiste a te abraçar, tu me fizeste te amar, tu não te cansavas de ouvir e falar.
Esta noite, em algum lugar, tu me agradeceste com o olhar. E me levaste a ver o mar, e eu te ouvi cantar.
Esta noite, em algum lugar, te senti feliz e a brilhar.
Esta noite, em algum lugar, eu me senti em ti enlaçar. E te soube capaz de me ajudar e me fiz capaz de te ajudar.
Esta noite, em algum lugar, estivemos uma vida a nos amar.

A ti, esta noite, em algum lugar, onde eu espero sempre te reencontrar.