Estavas distante nesse dia, eu recordo-me. Foi algo no teu olhar que, primeiramente, me alertou. Este vagueava, e, por vezes, se fixava num ponto algures longe do meu. Não fiquei indiferente a tal, apenas preocupado com a causa de tal comportamento. Tal não era normal em ti, não te conhecia esse hábito, e nem sequer me parecia que o fizesses por algo que te deixasse feliz ou, pelo menos, em repouso interior.
Estavas distante, estarias noutro lugar qualquer, com qualquer outra pessoa, ou até mesmo com a tua própria pessoa. Não estavas comigo, apesar de estares ali, apesar de eu estar ali, junto ao teu ali. Estavas com os teus próprios pensamentos, e estes formavam uma redoma que começava a inviabilizar a nossa comunicação. Não, definitivamente este não era o teu comportamento, era demasiado contrastante com todas as tuas atitudes que eu te conhecia e que antecediam a desse dia. Antecediam sem preceder.
De repente a mão tremeu, a tua mão tremeu, o que também não era comum, e ficou patente que os teus pensamentos se sobressaltaram, talvez tivessem visto um vulto furtivo ao virar de uma esquina, ou imerso nas sombras, uma penumbra flutuante que te assombrasse. A tua mão tremeu, o teu olhar se perdeu, se perdeu numa viela suja, num buraco na sarjeta, num ponto de fuga qualquer impossível de discernir no meio do tanto que era o gigantesco nada para o qual olhavas.
A tua mão tremeu, e a tua garganta oscilou, não, não eram soluços, não eram espasmos, era apenas um engolir em seco, engolir o silêncio do teu olhar, engolir qualquer segredo só teu, para que o digerisses e ele te alimentasse, para que ele passasse por entre os teus pulmões, e sentisse o teu respirar, o batimento do teu peito, mas, teria ele sentido esse batimento, se tu ali não estavas?
Do nada, teus lábios se abriram e pronunciaram o meu nome. Eu ouvi, era o meu nome, o meu nome nos teus lábios, na tua boca, o meu nome a sair de ti, quando tu ali não estavas, quando tu tinhas acabado de engolir o teu segredo só teu, era o meu nome que saía de ti, sem talvez nunca ter entrado, sem talvez nunca ter estado, o meu nome que provinha das tuas cordas vocais, que pareciam se juntar ao teu olhar na busca incessante do ponto de fuga; o meu nome que chegava até mim, numa eternidade momentânea.
De seguida, veio a explosão, veio o ribombar, veio o turbilhão, o tumulto que de ti emergiu, e que não é possível de lembrar, nem de esquecer, como algo que se criou e nunca existiu, veio tudo o que finalmente saiu, como se fosse extirpado, como se fosse a ferros, o teu olhar longe, a tua mão trémula, o teu peito a fervilhar de dor, o ponto de fuga sempre presente, mas agora estavas ali, estavas ali e dizias o meu nome, e dizias tudo o resto também, dizias o que tinhas, o que te tornava ausente, e em breve te tornaria definitivamente ausente, o que te feria e em breve te faria ir fazer companhia ao teu olhar, talvez nesse ponto de fuga que encaravas sem ver.
Veio o segredo, o segredo que tinhas engolido, num vómito frenético, um vómito em que a bílis era completamente espalhada sobre mim, e me sujava a roupa, me sujava o rosto, me sujava a mente e a alma, se entranhava em mim e me fazia olhar também para um ponto de fuga, que contudo, não era o teu. Veio o segredo, e o cheiro do teu segredo me fez ficar ausente de mim mesmo, me fez tremer a mão também, me fez ver o que não mais tornaria a ver.
Não pensei em justiça ou injustiça, nem sequer me revoltei, não tinha o direito de me revoltar, ele era todo teu, era o direito que estava a ribombar no teu peito, era o direito que te assistia, e que te fazia vomitar naquela explosão ácida que me atingiu, mas que era a ti que queimava por dentro.
Ao longe, vi uma lágrima. Vi-a sair a custo de ti, como se tivesse que abrir o caminho com toda a força que tinha, como se o saco lacrimal possuísse uma barreira invisível que a encarcerasse e a levasse a tentar ganhar fôlego e força para se evadir de ti. A lágrima foi se aproximando de mim, e trouxe companhia, todas as suas irmãs que sabiam do teu segredo, e que sabiam porque razão o tinhas vomitado em cima de mim, e que queriam estar comigo, talvez para acompanhar esse vómito, talvez para me susterem, talvez para encontrarem o meu ombro, como, afinal, acabaram por encontrar.
De repente, deixei de ver o teu olhar distante, senti a proximidade do vómito e da lágrima e apenas vislumbrava folículos e ouvia o meu nome abaixo do meu lóbulo, e ouvia o teu segredo gritar, e ouvia o vento a levar tudo embora, para bem longe e para bem dentro de mim. Eu ia carregar o teu vómito, o teu segredo e a tua lágrima. Eu ia carregar a tua dor, e ia doer em mim também, até porque eu não podia carregar o teu olhar, nem o ponto de fuga por ti encontrar. Senti o meu peito quente por dentro e por fora, senti um ofegar junto dele, e senti que, por instantes, estavas ali, não te quedavas só.
Falaste muito; do quê, apenas escassas lembranças. Porque quis esquecer, porque preferi recordar o teu rosto a olhar para longe, porque preferi lembrar o calor da tua lágrima, porque quis que vivesses em mim como antes te conhecera. Falaste muito, e muito contaste, e muito te esvaíste, e depois nos despedimos, e eu levei o teu segredo, foi comigo, e te deixei um sorriso, porque era um sorriso o que eu tinha para te dar, e foi um sorriso que a retina do teu olhar agarrou com as duas mãos. E foi um sorriso que os teus lábios conseguiram articular, antes de o teu olhar se virar para um outro lugar.
Voltei a ver-te uma outra vez. O teu corpo, deitado, exalava o estranho odor da ausência, uma ausência que, com antecedência, se anunciara eterna. Ao teu redor estava gente, alguma, gente que eu nunca vira, e alguma, pouca, que eu já conhecia. Os seus semblantes carregados contrastavam com a paz que tu emanavas, desconhecendo que já não mais vomitavas segredos, nem tua mão se atacava de tremuras. As tuas pálpebras estavam cerradas, não conseguia ver o teu olhar, mas adivinhava que, com elevada probabilidade, ele finalmente tivesse descoberto o ponto de fuga que procurara aquando do nosso anterior encontro, e que nele se tivesse entrelaçado.
Saí, olhei ao longe, e vi o teu sorriso. Ainda o vejo, de vez em quando. E é então que a lágrima que de ti saiu e de mim fez seu novo lar, abandona o calor que lhe ofereci e vem ver para onde estou a olhar, para com o teu sorriso se encontrar, nesse ponto de fuga em que não existem vómitos nem segredos.