Stress, Depressão & Síndrome de Pânico

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sou um pardal ateu e é isso...

segunda-feira, novembro 06, 2006

Dia Da Criação - Vinicius de Moraes

I

Hoje é sábado, amanhã é domingo
A vida vem em ondas, como o mar
Os bondes andam em cima dos trilhos
E Nosso Senhor Jesus Cristo morreu na Cruz para nos salvar.

Hoje é sábado, amanhã é domingo
Não há nada como o tempo para passar
Foi muita bondade de Nosso Senhor Jesus Cristo
Mas por via das dúvidas livrai-nos meu Deus de todo mal.

Hoje é sábado, amanhã é domingo
Amanhã não gosta de ver ninguém bem
Hoje é que é o dia do presente
O dia é sábado.

Impossível fugir a essa dura realidade
Neste momento todos os bares estão repletos de homens vazios
Todos os namorados estão de mãos entrelaçadas
Todos os maridos estão funcionando regularmente
Todas as mulheres estão atentas
Porque hoje é sábado.

II

Neste momento há um casamento
Porque hoje é sábado.
Há um divórcio e um violamento
Porque hoje é sábado.
Há um homem rico que se mata
Porque hoje é sábado.
Há um incesto e uma regata
Porque hoje é sábado.
Há um espetáculo de gala
Porque hoje é sábado.
Há uma mulher que apanha e cala
Porque hoje é sábado.
Há um renovar-se de esperanças
Porque hoje é sábado.
Há uma profunda discordância
Porque hoje é sábado.
Há um sedutor que tomba morto
Porque hoje é sábado.
Há um grande espírito de porco
Porque hoje é sábado.
Há uma mulher que vira homem
Porque hoje é sábado.
Há criancinhas que não comem
Porque hoje é sábado.
Há um piquenique de políticos
Porque hoje é sábado.
Há um grande acréscimo de sífilis
Porque hoje é sábado.
Há um ariano e uma mulata
Porque hoje é sábado.
Há um tensão inusitada
Porque hoje é sábado.
Há adolescências seminuas
Porque hoje é sábado.
Há um vampiro pelas ruas
Porque hoje é sábado.
Há um grande aumento no consumo
Porque hoje é sábado.
Há um noivo louco de ciúmes
Porque hoje é sábado.
Há um garden-party na cadeia
Porque hoje é sábado.
Há uma impassível lua cheia
Porque hoje é sábado.
Há damas de todas as classes
Porque hoje é sábado.
Umas difíceis, outras fáceis
Porque hoje é sábado.
Há um beber e um dar sem conta
Porque hoje é sábado.
Há uma infeliz que vai de tonta
Porque hoje é sábado.
Há um padre passeando à paisana
Porque hoje é sábado.
Há um frenesi de dar banana
Porque hoje é sábado.
Há a sensação angustiante
Porque hoje é sábado.
De uma mulher dentro de um homem
Porque hoje é sábado.
Há a comemoração fantástica
Porque hoje é sábado.
Da primeira cirurgia plástica
Porque hoje é sábado.
E dando os trâmites por findos
Porque hoje é sábado.
Há a perspectiva do domingo
Porque hoje é sábado.

III

Por todas essas razões deverias ter sido riscado do Livro das Origens, ó Sexto Dia da Criação.
De fato, depois da Ouverture do Fiat e da divisão de luzes e trevas
E depois, da separação das águas, e depois, da fecundação da terra
E depois, da gênese dos peixes e das aves e dos animais da terra
Melhor fora que o Senhor das Esferas tivesse descansado.
Na verdade, o homem não era necessário
Nem tu, mulher, ser vegetal dona do abismo, que queres como as plantas, imovelmente e nunca saciada
Tu que carregas no meio de ti o vórtice supremo da paixão.
Mal procedeu o Senhor em não descansar durante os dois últimos dias
Trinta séculos lutou a humanidade pela semana inglesa
Descansasse o Senhor e simplesmente não existiríamos
Seríamos talvez pólos infinitamente pequenos de partículas cósmicas em queda invisível na terra.
Não viveríamos da degola dos animais e da asfixia dos peixes
Não seríamos paridos em dor nem suaríamos o pão nosso de cada dia
Não sofreríamos males de amor nem desejaríamos a mulher do próximo
Não teríamos escola, serviço militar, casamento civil, imposto sobre a renda e missa de sétimo dia,
Seria a indizível beleza e harmonia do plano verde das terras e das águas em núpcias
A paz e o poder maior das plantas e dos astros em colóquio
A pureza maior do instinto dos peixes, das aves e dos animais em cópula.
Ao revés, precisamos ser lógicos, freqüentemente dogmáticos
Precisamos encarar o problema das colocações morais e estéticas
Ser sociais, cultivar hábitos, rir sem vontade e até praticar amor sem vontade
Tudo isso porque o Senhor cismou em não descansar no Sexto Dia e sim no Sétimo
E para não ficar com as vastas mãos abanando
Resolveu fazer o homem à sua imagem e semelhança
Possivelmente, isto é, muito provavelmente
Porque era sábado.

sexta-feira, novembro 03, 2006

Dois Livros

Desta vez, gostaria de deixar aqui um comentário a dois livros: “O Passo Seguinte”, de Fernando Morgado de Andrade (2005), e “O Príncipe e o Mago”, de Renato Morais (2003).

Não me alongarei demasiadamente. Deter-me-ei no primeiro, por ora. É um livro que retrata a vida de um sujeito na cidade de Lisboa, passada entre a ditadura e a democracia, um livro que foge à óbvia e linear análise política, antes se transforma num desabafo, numa assumpção de contradições, contradições de sentimentos e de posturas, alteração de ideias e ideais ao longo da vida, um livro que assenta nas pequenas coisas do dia a dia, que vai revelando diversas facetas daquilo que é a personalidade do personagem principal, as suas virtudes, os seus defeitos, em muitas circunstâncias o seu egoísmo, mesmo na forma como leva a relação com a pessoa que ama. Pois, é verdade, eu esquecia-me de dizer que, acima de tudo, é um livro centrado (ainda que não o pareça à primeira vista) na pessoa amada pelo personagem, no sentimento e no desenrolar da relação, nas coisas comezinhas, mas necessárias à vida de cada casal. É um livro que se lê sempre à espera do passo seguinte, e em que o passo seguinte nem sempre é o que se espera.

Para quem gosta de romances cor-de-rosa, este não é o livro ideal para isso. Existe romance, sem dúvida, mas o tom varia consoante o momento. Realça a profusão de sentimentos do principal personagem, a pequenez de muitos dos nossos actos diários, o facto de, muitas vezes, não serem actos genuínos, mas actos que efectuamos deliberadamente com o fito de daí obter algum proveito. É a tal diferença entre se obter reconhecimento ou procurá-lo. Parece o mesmo, mas não é. Aliás, a contínua procura de reconhecimento é um sinal de algum problema de índole psíquica, eventualmente de um certo mau estar consigo mesmo e com os outros, uma necessidade de tentar sempre ser algo reconhecido pelos outros, é sinal de fortes fragilidades.

Ora, neste romance, tal aparece de forma mais subtil ou mais gritante, consoante os momentos. A principal personagem anda sempre em busca de reconhecimento, quer pelo outro sexo, quer a nível laboral, tentando assim remendar as suas fragilidades, em busca sempre do passo seguinte, como se houvesse sempre um passo a dar. Respira-se a insatisfação permanente, tão característica do nosso ser nestes tempos contemporâneos, como se fôssemos obrigados a percorrer sempre uma trilha de mais e mais e mais.
A lucidez desta obra é bem patente no seu desfecho, na implícita conclusão de se dar demasiado valor na vida a coisas que pouco valor têm, da hipocrisia da vida, sobretudo da vida laboral, da desumanidade em que caminhamos e que, a maioria das vezes, apenas nos damos conta perto do final da caminhada, quando já nos faltam as forças e sobeja a fome e a sede. Nem de propósito, a capa do livro traz-nos um relógio. Mais que um passo a dar ou dado, para mim simboliza o tempo vivido e o tempo desperdiçado pelo protagonista.
De qualquer forma, e independentemente de opiniões discordantes, é um livro a ler, sem sombra de dúvida.


Já “O Príncipe e o Mago” é, apesar de mais curta em extensão, uma obra mais profunda. Sob a máscara de um conto passado em terras moldadas pela cultura e religião árabe, o autor relata o percurso de uma pessoa (um príncipe) em busca do seu auto-conhecimento, que, como é natural, nem sempre se revela fácil.
É patente que o autor não acredita em facilitismos nesse caminho; pelo contrário, é um caminho que pode ser doloroso, ir ao fundo de nós mesmos, saber o que somos, o que fazemos, e porque fazemos o que fazemos. Sujeitos a admirações, genuínas umas, forjadas uma grande parte, a invejas, ódios, cobiças, estando envolvidos pelo materialismo (dialéctico e não só), tornamo-nos muitas vezes doentes. E o foco da nossa doença vem de dentro, e não de fora. Rejeitando misticismos baratos (tão em voga nos nossos dias, desde o relativamente inócuo yoga até espiritismos, limpeza de energias – com que aspirador, pergunto eu), o autor frisa a importância do auto-conhecimento. O auto-conhecimento como fonte de um bem-estar natural e saudável, por oposição ao bem-estar incutido externamente.

Para Renato Morais, esse é um caminho essencialmente efectuado em solidão. E aqui, não estamos em acordo, ou não fosse Renato um amante da Psicologia, e eu com algumas noções elementares de Sociologia. O conhecimento de nós mesmos apenas tem relevância na medida em que somos um animal social (como os outros animais), e em que isso afecta as nossas relações com os objectos exteriores. Se esse caminho fosse efectuado em solidão, o ser humano poderia viver completamente só. Nem esse é o fito do ser humano, nem essa é a sua necessidade. Agora, é facto que o ser humano (como os outros animais) tem momentos com necessidade de isolamento, de auto-análise, mas a auto-análise nem sempre é suficiente, se o fosse, não seriam necessários amigos (numa esfera), psicólogos ou psicanalistas (em outra esfera). O caminho do nosso auto-conhecimento não tem de ser um caminho de solidão. Pode ser, o que é diferente. Mas não o é necessariamente.

Mais a mais, existem reflexões em que ouvir uma opinião externa, desde que genuína (e ao longo dos anos, vamos aprendendo quais as opiniões genuínas, quem é que efectivamente nos diz o que pensa ou acha, e aqueles que nos dizem apenas o que queremos ouvir), se torna fundamental para que nos apercebamos de coisas que, sozinhos, dificilmente ou mesmo nunca, seríamos levados a perceber.

Seja de que forma for, estou em completo acordo com a necessidade de ouvirmos o nosso interior, de lermos o nosso inconsciente, de assumirmos que amplas vezes, o papel que nos atribuíram, ou que nós atribuímos a nós mesmos, não se encaixa na nossa id, não é o nosso “eu”, é algo que depende e se amarra em constrangimentos sociais e pessoais, algo que idealizamos ou que nos traçaram (e aí, a escolha de um personagem príncipe é de uma lucidez e genialidade extraordinárias). E, um enorme mérito do livro, é o de não entender que essas amarras são eternas, mas que cabe à própria pessoa soltar-se delas. O caminho efectuado pelo príncipe vai em completo contra-ciclo em relação aos padrões “de sucesso” da nossa sociedade atomizada e anómica, mas é de uma coragem extrema (mais ainda por ser um príncipe).


A ambos os autores, desconhecidos do grande público, tão ávido em ler porcarias, endereço as maiores felicidades, além de um obrigado por partilharem connosco, os que lemos os vossos livros, a vossa honestidade intelectual e, com isso, me terem feito reflectir e ter sentido prazer em ler ambos os livros.
E espero que, mesmo discordando, entendam a franqueza das minhas opiniões.