Stress, Depressão & Síndrome de Pânico

Nome:

sou um pardal ateu e é isso...

quinta-feira, março 22, 2007

Ponto de Fuga

Estavas distante nesse dia, eu recordo-me. Foi algo no teu olhar que, primeiramente, me alertou. Este vagueava, e, por vezes, se fixava num ponto algures longe do meu. Não fiquei indiferente a tal, apenas preocupado com a causa de tal comportamento. Tal não era normal em ti, não te conhecia esse hábito, e nem sequer me parecia que o fizesses por algo que te deixasse feliz ou, pelo menos, em repouso interior.

Estavas distante, estarias noutro lugar qualquer, com qualquer outra pessoa, ou até mesmo com a tua própria pessoa. Não estavas comigo, apesar de estares ali, apesar de eu estar ali, junto ao teu ali. Estavas com os teus próprios pensamentos, e estes formavam uma redoma que começava a inviabilizar a nossa comunicação. Não, definitivamente este não era o teu comportamento, era demasiado contrastante com todas as tuas atitudes que eu te conhecia e que antecediam a desse dia. Antecediam sem preceder.

De repente a mão tremeu, a tua mão tremeu, o que também não era comum, e ficou patente que os teus pensamentos se sobressaltaram, talvez tivessem visto um vulto furtivo ao virar de uma esquina, ou imerso nas sombras, uma penumbra flutuante que te assombrasse. A tua mão tremeu, o teu olhar se perdeu, se perdeu numa viela suja, num buraco na sarjeta, num ponto de fuga qualquer impossível de discernir no meio do tanto que era o gigantesco nada para o qual olhavas.

A tua mão tremeu, e a tua garganta oscilou, não, não eram soluços, não eram espasmos, era apenas um engolir em seco, engolir o silêncio do teu olhar, engolir qualquer segredo só teu, para que o digerisses e ele te alimentasse, para que ele passasse por entre os teus pulmões, e sentisse o teu respirar, o batimento do teu peito, mas, teria ele sentido esse batimento, se tu ali não estavas?

Do nada, teus lábios se abriram e pronunciaram o meu nome. Eu ouvi, era o meu nome, o meu nome nos teus lábios, na tua boca, o meu nome a sair de ti, quando tu ali não estavas, quando tu tinhas acabado de engolir o teu segredo só teu, era o meu nome que saía de ti, sem talvez nunca ter entrado, sem talvez nunca ter estado, o meu nome que provinha das tuas cordas vocais, que pareciam se juntar ao teu olhar na busca incessante do ponto de fuga; o meu nome que chegava até mim, numa eternidade momentânea.

De seguida, veio a explosão, veio o ribombar, veio o turbilhão, o tumulto que de ti emergiu, e que não é possível de lembrar, nem de esquecer, como algo que se criou e nunca existiu, veio tudo o que finalmente saiu, como se fosse extirpado, como se fosse a ferros, o teu olhar longe, a tua mão trémula, o teu peito a fervilhar de dor, o ponto de fuga sempre presente, mas agora estavas ali, estavas ali e dizias o meu nome, e dizias tudo o resto também, dizias o que tinhas, o que te tornava ausente, e em breve te tornaria definitivamente ausente, o que te feria e em breve te faria ir fazer companhia ao teu olhar, talvez nesse ponto de fuga que encaravas sem ver.

Veio o segredo, o segredo que tinhas engolido, num vómito frenético, um vómito em que a bílis era completamente espalhada sobre mim, e me sujava a roupa, me sujava o rosto, me sujava a mente e a alma, se entranhava em mim e me fazia olhar também para um ponto de fuga, que contudo, não era o teu. Veio o segredo, e o cheiro do teu segredo me fez ficar ausente de mim mesmo, me fez tremer a mão também, me fez ver o que não mais tornaria a ver.

Não pensei em justiça ou injustiça, nem sequer me revoltei, não tinha o direito de me revoltar, ele era todo teu, era o direito que estava a ribombar no teu peito, era o direito que te assistia, e que te fazia vomitar naquela explosão ácida que me atingiu, mas que era a ti que queimava por dentro.

Ao longe, vi uma lágrima. Vi-a sair a custo de ti, como se tivesse que abrir o caminho com toda a força que tinha, como se o saco lacrimal possuísse uma barreira invisível que a encarcerasse e a levasse a tentar ganhar fôlego e força para se evadir de ti. A lágrima foi se aproximando de mim, e trouxe companhia, todas as suas irmãs que sabiam do teu segredo, e que sabiam porque razão o tinhas vomitado em cima de mim, e que queriam estar comigo, talvez para acompanhar esse vómito, talvez para me susterem, talvez para encontrarem o meu ombro, como, afinal, acabaram por encontrar.

De repente, deixei de ver o teu olhar distante, senti a proximidade do vómito e da lágrima e apenas vislumbrava folículos e ouvia o meu nome abaixo do meu lóbulo, e ouvia o teu segredo gritar, e ouvia o vento a levar tudo embora, para bem longe e para bem dentro de mim. Eu ia carregar o teu vómito, o teu segredo e a tua lágrima. Eu ia carregar a tua dor, e ia doer em mim também, até porque eu não podia carregar o teu olhar, nem o ponto de fuga por ti encontrar. Senti o meu peito quente por dentro e por fora, senti um ofegar junto dele, e senti que, por instantes, estavas ali, não te quedavas só.

Falaste muito; do quê, apenas escassas lembranças. Porque quis esquecer, porque preferi recordar o teu rosto a olhar para longe, porque preferi lembrar o calor da tua lágrima, porque quis que vivesses em mim como antes te conhecera. Falaste muito, e muito contaste, e muito te esvaíste, e depois nos despedimos, e eu levei o teu segredo, foi comigo, e te deixei um sorriso, porque era um sorriso o que eu tinha para te dar, e foi um sorriso que a retina do teu olhar agarrou com as duas mãos. E foi um sorriso que os teus lábios conseguiram articular, antes de o teu olhar se virar para um outro lugar.

Voltei a ver-te uma outra vez. O teu corpo, deitado, exalava o estranho odor da ausência, uma ausência que, com antecedência, se anunciara eterna. Ao teu redor estava gente, alguma, gente que eu nunca vira, e alguma, pouca, que eu já conhecia. Os seus semblantes carregados contrastavam com a paz que tu emanavas, desconhecendo que já não mais vomitavas segredos, nem tua mão se atacava de tremuras. As tuas pálpebras estavam cerradas, não conseguia ver o teu olhar, mas adivinhava que, com elevada probabilidade, ele finalmente tivesse descoberto o ponto de fuga que procurara aquando do nosso anterior encontro, e que nele se tivesse entrelaçado.

Saí, olhei ao longe, e vi o teu sorriso. Ainda o vejo, de vez em quando. E é então que a lágrima que de ti saiu e de mim fez seu novo lar, abandona o calor que lhe ofereci e vem ver para onde estou a olhar, para com o teu sorriso se encontrar, nesse ponto de fuga em que não existem vómitos nem segredos.

segunda-feira, março 12, 2007

Admirável Mundo Novo (o Sr Huxley que me perdoe a pilhagem)

Não eras forte nem particularmente bonito. Não tinhas uma silhueta invejável nem sequer aquele charme que caracteriza os sedutores. Não tinhas pretensões de seres o que não eras nem aquelas ambições que tanto fazem as delícias das mulheres. Não te pelavas todo por um bom carro, não te importavas com uma boa casa e dispensavas bem um restaurante bem decorado, pois o que te preenchia era boa comida.

Não tinhas uma única característica que me agradasse, que combinasse comigo, que eu te dissesse que era afim a mim. No entanto, por artes que não tenho o condão de explicar, eras especial. Eras especial e algo gravaste em mim em algum lugar que não consigo encontrar. Às vezes, parece que não estás lá, parece que nunca estiveste, mas há momentos em que me apercebo que a tua presença é uma constante, como se eu nunca estivesse só.
Nessas alturas em que te revelas, fazes-me recordar momentos que eu nem sonhava que haviam existido, fazes-me lembrar de eu e tu deitados sobre o mesmo leito, por vezes abraçados, como se o mundo se fundisse em nós. Como quando me revolvias o cabelo ou eu te tocava no rosto.

Partiste e eu julguei que era apenas um arrufo. Mas havias partido de vez. A início, o alívio, depois uma estranha indefinição, e por fim, a tua imagem, de tantas vezes me teres feito chorar e de tantas vezes te ter eu feito sofrer. Partiste, e eu pensei que apenas foras um raio de luz, que apenas vieras dar um vislumbre de ti. Partiste e avisaste da tua ida. Mas eu não quis ouvir, eu nunca quis ouvir. Eu pensei sempre que ficavas, que não te desligarias de mim nunca, porque eu era especial. Nem dei conta de que tu também o eras, nem dei conta de me perder em mim mesma. Defini as minhas verdades e a elas me agarrei até ao fim, até ao último instante, aquele em que me deixaste só, sem eu entender bem o que estava a acontecer.

Eu estava imersa em mim e não medi o impacto do teu acto. Preocupara-me tanto em te submeter a mim, em querer que me amasses como eu sou, que nem me preocupei em te amar como tu és. Tanto quis ter de ti, que, por tão diferente seres do que sempre sonhara para mim, nem te quis dar o que de mim querias receber. Sempre achei fazer o certo e, talvez por isso, te ouvisse, sim, ouvia-te, mas sem te entender. O mundo parecia uma massa muito mais densa quando falavas, e eu não queria a densidade, eu queria que deixasses os problemas do mundo de lado e olhasses para mim, para que visses como eu sou bonita, quando eu própria apenas te falava do meu mundo, que eu entendia ser o ideal, e que nunca abandonaria, e para ti não olhava. Ou olhava sem te ver.

Partiste e a tua partida foi o que mais me marcou. Apenas depois de ires, muito depois de ires, comecei a ouvir a tua voz, a me recordar de tuas palavras. Vivi muitos momentos com a cabeça em ti, passei por situações em que sentia que me estavas a observar, como se soubesses que um dia me ocorreriam. Podias estar longe, mas quando, por vezes, tu me abandonavas, como se tivesses desaparecido de mim, eu encontrava-te num canto meu, para o qual eu nunca tivera a coragem de olhar antes.

Nunca gostei de admitir os meus erros, reconheço, sou orgulhosa, gosto de ultrapassar as situações sem dar parte de fraca, porque sou insegura e raios te partam se tu não vislumbraste sempre a minha insegurança. Tive, tive medo. Muito medo. Ou julgas que era fácil aceitar algo como tu, que eu nunca entendi bem? E, além de não entender, diminuía.

Durante anos pensei que partilhar era tem alguém ao lado com quem falar sobre os nossos sucessos e que nos suportaria nas alturas más. Ensinaste-me, ainda que de forma enviesada, que partilhar é, mais que tudo, o que podemos fazer pelos que estão ao nosso lado. Tu querias mostrar que partilhar é dar um abraço a quem achava que partilhar era dizer que tinha sido promovida ou cujo trabalho tinha sido reconhecido. Eu própria queria que tu fosses reconhecido, porque te achava com valor, mas nunca parei para ver de onde era originário o valor que eu pensava tu teres. Tentaste partilhar comigo a tua profundidade, eu apenas queria a superfície. Terei feito sempre isso sem me dar conta?

Desconheço tudo sobre ti. Onde te encontras, o que fazes. Quem és. Mas sinto falta do teu ar desmazelado, do teu ombro nos momentos difíceis, da tua lucidez quando tudo se aparenta a um jardim florido, da tua amargura crítica perante o que nos rodeia, do teu companheirismo, e do teu calor. Sinto falta das tuas pernas cruzadas nas minhas. Sinto falta de acordar ao teu lado numa cama apertada e não querer ir trabalhar, querer ficar assim, apenas, sem dizer palavra, como tão poucas vezes ficamos.

Tenho muito, hoje. Tenho. Mas não te tenho a ti, de quem gostei sem querer ter. Gostaria, pelo menos, de te rever, que tomássemos um chá, ou fossemos jantar. Gostaria de, ainda que por umas horas, sentir que, afinal, não foste embora, que todo este tempo que passou, na verdade, não passou, foi apenas uma noite mal dormida, um estranho sonho que se apoderou de nós, mas nos largou no despertar de uma manhã primaveril, morna e aromática.

E que, ao acordar, estavas ao meu lado e eu te abraçava enquanto dormias. Para que não fugisses, para que não saísses para ir trabalhar e que, por um dia, eu me entregasse em teus braços e me perdesse de mim, para que eu soubesse, por uma vez, o que era ser tua. Ser tua de verdade.