Stress, Depressão & Síndrome de Pânico

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sou um pardal ateu e é isso...

segunda-feira, julho 31, 2006

Rosa de Hiroshima - Vinicius de Moraes

Pensem nas crianças
Mudas telepáticas
Pensem nas meninas
Cegas inexatas
Pensem nas mulheres
Rotas alteradas
Pensem nas feridas
Como rosas cálidas

Mas, oh, não se esqueçam
Da rosa da rosa
Da rosa de Hiroshima
A rosa hereditária
A rosa radioativa
Estúpida e inválida
A rosa com cirrose
A anti-rosa atômica
Sem cor sem perfume
Sem rosa sem nada

(é muito difícil ouvir o Ney Matogrosso a cantar este poema e não sentir um frio na espinha...)

quinta-feira, julho 27, 2006

A Falta da falta da falta (II)

O grito não era de desespero, dor ou fúria. Pelo menos, não era de nenhum destes desvarios em separado; talvez fosse de um pouco de cada conjuntamente. Era mais um chamado, um chamado que tanto era dirigido ao interior como ao exterior. Era a vontade indomável de tentar encontrar o ser que adivinhara a cor do quarto, sem lá ter colocado os pés. Ou teria?

De facto, com aquela criatura, era impossível saber. Fora sempre impossível saber. Entrara, não sabia ao certo se entrara devagar ou depressa, mas encontrara dentro de si um lugar onde se alojar e criar raízes. E criara-as, de facto. Agora pretendia a sua volta. E obtinha a sua visita. Imaterial. Caramba, a sua presença parecia eterna, como se fosse um mistério que se divertia a entranhar-se em sua mente. Como se sempre tivesse existido. Exacto. Quando conhecera essa estranha criatura que um dia partira, tinha sentido uma delirante afinidade. Como se podia sentir afinidade com alguém tão diferente e tão novo em nossa vida? Ora, quando se fora, apercebera-se que essa afinidade tinha um fundo alojado bem dentro de si. Como se algo em si tivesse identificado aquele curioso e estranho ser no preciso instante em que o conhecera. Ou mesmo antes disso.

Nos momentos mais ásperos de solidão, foi juntando pequenas peças. Ao longo dos anos, compreendera que aquela criatura viera em seu socorro, um socorro que nunca pedira, mas que sabia ter vindo das suas profundezas. Um socorro em silêncio; silêncio que fora ouvido e atendido. Mas fora tudo tão complicado… não percebia muitas das coisas que lhe foram ditas. Nunca entendera tanta intensidade ao vivenciar o dia a dia, fosse na alegria, na tristeza, na dor, na felicidade ou até num simples suspiro. Sempre lhe dissera: “deves viver a vida de forma leve”. Ao que ouvia como resposta: “a Vida dói. Mas apenas assim se vive”. Sabia que não pronunciavam “vida” da mesma forma. E nunca percebera a entoação que ouvia naquela voz, mas que sentia ser distinta da sua.

Quando decidiram se separar, pensou que em breve se esqueceria, e que apenas ficariam ligeiras recordações. As mais doces, como sempre. Ledo e cruel pensamento equivocado. Parecia que tinha sempre algo a espernear dentro de si. Algo que lhe fazia uma visita durante o dia ou durante a noite. As discussões, os abraços, os choros, os beijos, as irritações, o sexo, tudo lhe aparecia num luminoso turbilhão. Quando iniciou a relação seguinte, a pessoa que escolhera para a parceria do projecto de vida era simpática, doce, bonita e alegre. Porque raio sempre achara que lhe faltava algo? Ironicamente, muito do que antes criticara, sentia agora falta. Sentia falta daquela criatura que parecia lhe ler os pensamentos (e que depois soube e sentiu que os lera mais vezes do que julgara); sentia falta das horas de choro e briga, sentia falta das explosões. Tinha uma relação firme agora, tinha uma relação calma, estável, financeiramente desafogada. Tinha o que sempre quis ter. Mas não tinha já o que tinha tido e que nunca julgara possível pretender ter.

Ao início, ainda telefonava. Continuava a saber bem ouvir aquela voz. Até ao dia em que, do outro lado, deixaram de atender. Ainda assim, apenas desistiu quando o número deixou de existir.

A sua relação estável acabou por terminar. Ambos se fartaram do marasmo. Podia não ser inédito, mas não era de todo vulgar: a falta que sentia era da relação antecedente. Em pouco tempo, porém, começara outra. Esta, parecia ser a valer: alguém que já conhecia, de quem já gostara; certamente daria certo. Não deu. Entendiam-se bem, não se nega tal aqui nestas breves linhas; sucede apenas que o companheirismo existente inicialmente não se alicerçava em carinho, afecto e entrega física. Fora a primeira vez que se apercebera da real importância da entrega física desmesurada a dois. Só que… não a conseguia ter. Tinha sido com aquela pessoa que mais perdera as estribeiras. Porque subvalorizara tanto isso nessa época? Nunca quis aceitar que fosse um pilar central da construção de uma família (começando pelo núcleo do casal). Hoje, parecia-lhe impossível aprofundar a pessoalidade da relação sem se sentir feliz e prenhe de uma sensação de preenchimento.
Mais uma relação acabaria por findar. Parecia embruxada. Mas sabia não estar. Sabia que dentro de si continuava a carregar um alguém especial.

Um alguém a quem tinha uma raiva desmesurada por nunca mais ter voltado ou dado sinais de vida. Um alguém amaldiçoado, insultado, apedrejado mentalmente, e, em simultâneo, um alguém a quem nunca cessaram os seus pedidos de retorno. Inglórios pedidos, de nunca atendidos, passou a chamar-lhe “os perdidos”.

(Continua…)

terça-feira, julho 18, 2006

A Falta da Falta da Falta

Levantou-se devagar e inspirou profundamente. O ar estava longe de ser puro, antes estava carregado da respiração de mais uma noite dormida, com os lençóis colocados para trás, com a porta entreaberta, a janela mal fechada, uma noite em que os pensamentos rolaram e voltaram a rolar, sob a forma de sonhos, sob a forma de movimentos corporais, o flectir das pernas, o abrir os braços, o virar de lado.

Levantou-se e não deixou a claridade entrar no quarto. Por momentos, quis sentir o ar escuro, quis saborear o peso de um odor carregado. Dirigiu-se ao quarto de banho, corpo e espírito estremunhados, mas não teve a imediata preocupação de lavar o rosto. Apenas quis despejar os líquidos acumulados durante a noite. Após tê-lo feito, abriu o chuveiro. A água fria trouxe-lhe a reacção instintiva de o voltar a fechar. Esqueceu o banho. Voltou ao quarto e deitou-se. Por momentos, pareceu-lhe ver na outra almofada uma cabeça a repousar. A cabeça de quem queria que ali estivesse. Procurou, procurou as marcas do corpo na cama, na almofada. Sabia que era uma procura inglória, motivada apenas por lembranças. Apesar da segunda almofada, ali apenas dormia uma pessoa.

É certo que haviam passado diversas pessoas, por suas camas, ao longo da vida. E que havia sentido falta de diversas delas em algumas ocasiões. Contudo… contudo, havia uma que ainda hoje parecia lá estar, como de costume, a fitar algum ponto longínquo e tantas vezes invisível. Parecia ainda ouvir aquela voz aconchegante, aquela voz que lhe transmitia uma estranha paz. Parecia ainda sentir o calor do seu corpo, que mesmo suado no Verão, lhe trazia uma companhia sob a forma de um abraço. Parecia ainda que ouvia o seu respirar profundo, que sentia a sua mão pousada em seu peito.

Estranho como um ente ausente se fazia tantas vezes presente. Levantou o braço e abriu uma gaveta da mesinha de cabeceira. O criado mudo, como dizem os brasileiros. De lá tirou um papel antigo, amarelado pelo tempo e pela luz, e já bastante amarrotado. Leu as palavras escritas tempos atrás, palavras que hoje sentia como mais certeiras do que no momento em que as leu pela primeira vez. Um nó no estômago. Sentia sempre o mesmo nó ao ler o papel. Seria mesmo possível que, tanto tempo depois, aquela criatura estivesse tão entranhada em si? E porquê aquela lembrança tão forte naquela manhã? Afinal, a vida estava lá fora… estaria? Recordou mais uma vez a pessoa com quem se partilhara em tempos e uma expressão que ela usava “a Vida está cá dentro. Lá fora, é apenas o mundo.”

Uma lágrima escorreu-lhe pelo rosto e, pela enésima vez, amaldiçoou-lhe a ausência. Nunca devia ter deixado que partisse. O alívio momentâneo dera azo a um vazio que nunca preenchera. É certo que vieram outras pessoas, é certo que sorriu e chorou e se deu novamente, mas nunca mais aqueles olhos a aconchegar-lhe a alma… nunca mais o carrossel de emoções. Nunca mais a vertigem da Vida. A partir daí, mesmo com discussões, brigas e pazes, restava, ao fim de algum tempo, uma sensação sensaborona, uma falta estranha de algo mais profundo em si. Como alguém dissera um dia, depois de mergulhar profundamente, estar permanentemente à superfície era insatisfatório. E fixou o olhar, como fixam os pescadores em direcção ao mar.

Há já muitos anos que não se viam. Onde estaria e o que faria?

Inspirou e expirou. Parecia sentir o seu odor ali presente. Não era possível, o cheiro de quem não está não se faz sentir… ou fará?

Levantou-se de novo, tomou banho, comeu uma torrada e bebeu leite e saiu para trabalhar. As imagens não abandonavam a sua mente, ou a sua mente é que se recusava a abandoná-las, que importância teria isso agora…? Não se conseguia concentrar no trabalho, mas, tendo em conta o que fazia, ninguém lhe chamaria a atenção de nada. Resolveu ir almoçar com uma amiga a um restaurante.

Teve esperanças de encontrar a criatura, afinal… seria bonito, não? E a sua presença estava tão forte, naquele dia… mas não… no restaurante, nada. Após uma conversa corriqueira com a amiga, retornou ao trabalho e, mais tarde, saiu e foi para casa, descansar. Tirou os sapatos e foi à cozinha beber um copo de água. Ao entrar, sentiu um estranho arrepio… como se não estivesse só. Abanou a cabeça, não, não podia ser, que parvoíce…

Foi então que viu no chão um envelope, selado, com seu nome e morada. Sem remetente. Como teria aquele envelope ido ali parar? Ah, claro, a empregada, só podia ter sido… uma carta anónima? Ia deitá-la fora, mas um impulso a fez abrir. E leu. E voltou a ler. E de novo, e de novo. Leu em silêncio, leu em voz alta, leu lenta e rapidamente.

“Olá.
Que estas palavras te encontrem em paz, interior e exterior, e que essa paz não seja perturbada com o calor que, espero, elas te tragam. Depois que nos separamos, pensei amiúdes vezes em ti. Diferentemente de saudades, sentia mais uma curiosa preocupação. Abríramos a porta de saída para que cada um de nós desse azo à sua procura pela felicidade; nunca nenhum de nós soube se e quanto fazia feliz o outro.
Sentíramos, contudo, o peso de diferenças, divergências e desgaste. Tinhas razão: a minha visão do mundo trouxe-me muitas dificuldades, muitos desgostos e desânimos. Muitas vezes senti-me lutar contra toda a panóplia de sentimentos medíocres e mesquinhos que, paulatinamente, foram tomando conta da humanidade. Cada um desses duros obstáculos, apenas me obstinou mais, me fez sentir no caminho certo.
Espero que o teu caminho também tenha sido o certo para ti. Abrimos espaço para que isso acontecesse, lembras-te?
No entanto, hoje sei que poderia ter sido diferente. E manda a honestidade que não guarde essa noção apenas para mim, como se fosse uma almofada que me aconchegasse nas noites frias.
Não estaremos longe da verdade se admitirmos que teria sido difícil e até mesmo exasperante, que as cabeçadas seriam frequentes. Assim… assim ficou a sensação de um adeus precoce, de algo… que não foi.
Estive brevemente por aqui, mas agora voltarei ao Chile, onde me fixei.

Beijos e que a vida te tenha trazido alegrias e infelicidades. Um pouco de tudo, para que seja uma vida completa.

P.S. Claro que a Vida, com V, está dentro de cada um de nós. Que a tenhas sentido sempre.

P.P.S. Podias ter escolhido uma cor melhor para o quarto, esse pastel não combina bem… com o resto”

Cor melhor para o quarto? Como é que podia saber a cor do quarto? Apeteceu-lhe gritar.

Gritou. Pouco mais lhe saiu que um silvo rouco. Não interessava. Sabia que alguém, algures no mundo, tinha ouvido aquele grito. Só esperava que atendesse ao seu chamado. Como atendera uma vez. Há já muitos anos.

(continua…)