Levantou-se devagar e inspirou profundamente. O ar estava longe de ser puro, antes estava carregado da respiração de mais uma noite dormida, com os lençóis colocados para trás, com a porta entreaberta, a janela mal fechada, uma noite em que os pensamentos rolaram e voltaram a rolar, sob a forma de sonhos, sob a forma de movimentos corporais, o flectir das pernas, o abrir os braços, o virar de lado.
Levantou-se e não deixou a claridade entrar no quarto. Por momentos, quis sentir o ar escuro, quis saborear o peso de um odor carregado. Dirigiu-se ao quarto de banho, corpo e espírito estremunhados, mas não teve a imediata preocupação de lavar o rosto. Apenas quis despejar os líquidos acumulados durante a noite. Após tê-lo feito, abriu o chuveiro. A água fria trouxe-lhe a reacção instintiva de o voltar a fechar. Esqueceu o banho. Voltou ao quarto e deitou-se. Por momentos, pareceu-lhe ver na outra almofada uma cabeça a repousar. A cabeça de quem queria que ali estivesse. Procurou, procurou as marcas do corpo na cama, na almofada. Sabia que era uma procura inglória, motivada apenas por lembranças. Apesar da segunda almofada, ali apenas dormia uma pessoa.
É certo que haviam passado diversas pessoas, por suas camas, ao longo da vida. E que havia sentido falta de diversas delas em algumas ocasiões. Contudo… contudo, havia uma que ainda hoje parecia lá estar, como de costume, a fitar algum ponto longínquo e tantas vezes invisível. Parecia ainda ouvir aquela voz aconchegante, aquela voz que lhe transmitia uma estranha paz. Parecia ainda sentir o calor do seu corpo, que mesmo suado no Verão, lhe trazia uma companhia sob a forma de um abraço. Parecia ainda que ouvia o seu respirar profundo, que sentia a sua mão pousada em seu peito.
Estranho como um ente ausente se fazia tantas vezes presente. Levantou o braço e abriu uma gaveta da mesinha de cabeceira. O criado mudo, como dizem os brasileiros. De lá tirou um papel antigo, amarelado pelo tempo e pela luz, e já bastante amarrotado. Leu as palavras escritas tempos atrás, palavras que hoje sentia como mais certeiras do que no momento em que as leu pela primeira vez. Um nó no estômago. Sentia sempre o mesmo nó ao ler o papel. Seria mesmo possível que, tanto tempo depois, aquela criatura estivesse tão entranhada em si? E porquê aquela lembrança tão forte naquela manhã? Afinal, a vida estava lá fora… estaria? Recordou mais uma vez a pessoa com quem se partilhara em tempos e uma expressão que ela usava “a Vida está cá dentro. Lá fora, é apenas o mundo.”
Uma lágrima escorreu-lhe pelo rosto e, pela enésima vez, amaldiçoou-lhe a ausência. Nunca devia ter deixado que partisse. O alívio momentâneo dera azo a um vazio que nunca preenchera. É certo que vieram outras pessoas, é certo que sorriu e chorou e se deu novamente, mas nunca mais aqueles olhos a aconchegar-lhe a alma… nunca mais o carrossel de emoções. Nunca mais a vertigem da Vida. A partir daí, mesmo com discussões, brigas e pazes, restava, ao fim de algum tempo, uma sensação sensaborona, uma falta estranha de algo mais profundo em si. Como alguém dissera um dia, depois de mergulhar profundamente, estar permanentemente à superfície era insatisfatório. E fixou o olhar, como fixam os pescadores em direcção ao mar.
Há já muitos anos que não se viam. Onde estaria e o que faria?
Inspirou e expirou. Parecia sentir o seu odor ali presente. Não era possível, o cheiro de quem não está não se faz sentir… ou fará?
Levantou-se de novo, tomou banho, comeu uma torrada e bebeu leite e saiu para trabalhar. As imagens não abandonavam a sua mente, ou a sua mente é que se recusava a abandoná-las, que importância teria isso agora…? Não se conseguia concentrar no trabalho, mas, tendo em conta o que fazia, ninguém lhe chamaria a atenção de nada. Resolveu ir almoçar com uma amiga a um restaurante.
Teve esperanças de encontrar a criatura, afinal… seria bonito, não? E a sua presença estava tão forte, naquele dia… mas não… no restaurante, nada. Após uma conversa corriqueira com a amiga, retornou ao trabalho e, mais tarde, saiu e foi para casa, descansar. Tirou os sapatos e foi à cozinha beber um copo de água. Ao entrar, sentiu um estranho arrepio… como se não estivesse só. Abanou a cabeça, não, não podia ser, que parvoíce…
Foi então que viu no chão um envelope, selado, com seu nome e morada. Sem remetente. Como teria aquele envelope ido ali parar? Ah, claro, a empregada, só podia ter sido… uma carta anónima? Ia deitá-la fora, mas um impulso a fez abrir. E leu. E voltou a ler. E de novo, e de novo. Leu em silêncio, leu em voz alta, leu lenta e rapidamente.
“Olá.
Que estas palavras te encontrem em paz, interior e exterior, e que essa paz não seja perturbada com o calor que, espero, elas te tragam. Depois que nos separamos, pensei amiúdes vezes em ti. Diferentemente de saudades, sentia mais uma curiosa preocupação. Abríramos a porta de saída para que cada um de nós desse azo à sua procura pela felicidade; nunca nenhum de nós soube se e quanto fazia feliz o outro.
Sentíramos, contudo, o peso de diferenças, divergências e desgaste. Tinhas razão: a minha visão do mundo trouxe-me muitas dificuldades, muitos desgostos e desânimos. Muitas vezes senti-me lutar contra toda a panóplia de sentimentos medíocres e mesquinhos que, paulatinamente, foram tomando conta da humanidade. Cada um desses duros obstáculos, apenas me obstinou mais, me fez sentir no caminho certo.
Espero que o teu caminho também tenha sido o certo para ti. Abrimos espaço para que isso acontecesse, lembras-te?
No entanto, hoje sei que poderia ter sido diferente. E manda a honestidade que não guarde essa noção apenas para mim, como se fosse uma almofada que me aconchegasse nas noites frias.
Não estaremos longe da verdade se admitirmos que teria sido difícil e até mesmo exasperante, que as cabeçadas seriam frequentes. Assim… assim ficou a sensação de um adeus precoce, de algo… que não foi.
Estive brevemente por aqui, mas agora voltarei ao Chile, onde me fixei.
Beijos e que a vida te tenha trazido alegrias e infelicidades. Um pouco de tudo, para que seja uma vida completa.
P.S. Claro que a Vida, com V, está dentro de cada um de nós. Que a tenhas sentido sempre.
P.P.S. Podias ter escolhido uma cor melhor para o quarto, esse pastel não combina bem… com o resto”
Cor melhor para o quarto? Como é que podia saber a cor do quarto? Apeteceu-lhe gritar.
Gritou. Pouco mais lhe saiu que um silvo rouco. Não interessava. Sabia que alguém, algures no mundo, tinha ouvido aquele grito. Só esperava que atendesse ao seu chamado. Como atendera uma vez. Há já muitos anos.
(continua…)