Stress, Depressão & Síndrome de Pânico

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sou um pardal ateu e é isso...

terça-feira, outubro 31, 2006

A Falta da Falta da Falta (VII)

Um dia, recebeu um convite de uma amiga sua estrangeira para ir passar uns dias com ela. Foram de férias uma semana. A sua amiga tivera tanta sorte, em ter tido um marido assim, que a deixasse ir passar férias com os amigos ou colegas, sem levantar obstáculos. Na primeira noite, ao jantar, comentou isso com ela. Esta retorquiu-lhe: “eu já não estou casada.”.

Aquilo apanhou-a de surpresa. Apenas vira o marido uma vez, mas sempre admirara a forma desprendida como ele encarava as incursões da mulher ao exterior. Algo de sério se teria passado. “Passou, passou... ele aproveitava as minhas saídas para andar com outras. Até que passou a andar só com uma. E com ela ficou!”; “Os homens realmente não prestam.... Vais ver que, com o tempo te sentes melhor! Estás melhor assim, sem ele!”. Pelo olhar da amiga, logo se arrependeu de ter proferido estas palavras. “Melhor sem ele? Pensas que não me culpo? Pensas que não sei bem que, se me tivesse dedicado um pouco mais, as coisas teriam sido de outra forma?”; “Mas ele aproveitava-se da tua ausência para estar com outras... isso é indecente, desculpa lá que te diga!”; “Também foi indecente da minha parte tantas vezes trabalhar sete dias por semana, passar a vida preocupada com mais uma meta a atingir. Foi indecente nunca ter tido tempo para o ouvir, para lhe dar carinho, para o apoiar.”; “Ele atirou-te isso à cara?”; “Ele há anos que me deixou de atirar fosse o que fosse à cara. Decerto achou inútil, e foi a partir daí que começou a ter outras”; “Mas tu não tens culpa de nada, ele tinha que entender as tuas prioridades, as tuas opções, era importante para ti, os teus projectos...”.

Foi interrompida por uma frase sibilante, exprimida num tom dorido, “E como se eu alguma vez tivesse entendido as prioridades dele. Passou anos a querer ter filhos, e eu fui adiando, adiando... quando o tive, já estávamos a viver cada um para seu lado. Não, sabes porque não o culpo? Porque sinto que, no lugar dele, eu teria feito o mesmo. Não teria aguentado e teria arranjado um suporte. Minha mãe bem me avisara... muitas vezes...”; “Tua mãe? Que te dizia tua mãe?”; “Que não era assim que se tratava um homem. Que ele era muito bom e paciente, mas que a paciência acaba.”; “Agora tens mais é que deixar isso para trás das costas. Ele ficou com o teu filho, enquanto vieste de férias?”, “Não, o filho fica à tutela dele.”; “O quê?? Mas ele é um adúltero! Não percebo como é que um tribunal decide...”; a amiga interrompe-a bruscamente: “Tribunal? Quem falou em tribunal? Foi de comum acordo que decidimos assim. Ou pensas que a minha vida me permite parar para cuidar do meu filho? Quem dera. Construí a minha própria jaula, achando que o fazia do lado de fora. Mas fi-lo por dentro, e esqueci-me de abrir uma porta.”; “Pensa que és uma mulher brilhante, prestigiada, com uma carreira que poucas pessoas do ramo se podem gabar de ter...”; “Sabes o que te digo? Merda para a carreira! Merda para tudo isso, merda para os trabalhos que eu já fiz, caralho para isso tudo!”; “Nunca te ouvi falar assim… Não acho que devas pensar dessa maneira... isso é do momento...”; “Para ti é fácil falar, porque nunca te casaste. E por isso, podes ser assim, e erguer a tua carreira, sem medo de prejudicar a tua vida pessoal, porque não tens família, não tens marido ou filhos. Eu tinha... e não fui capaz de conciliar as coisas...”

O jantar acabara de forma depressiva e fora cada uma para seu quarto. No seu quarto, parou para reflectir sobre a conversa que tivera ao jantar. Parecia que já tinha ouvido aquela conversa, noutra época, quase como se fosse outra era. Sentia vertigens. Se ele estivesse ao seu lado, diria que era da menopausa. Esse pensamento fê-la sorrir. Era uma frase típica dele. Adormeceu, não sem antes rever em sua mente o filme da noite. A conversa sobre o divórcio da sua amiga... tinha sido apanhada de surpresa… nunca se apercebera de nenhuma fricção entre ela e o marido… e, numa espécie de auto-convencimento, disse para si mesma: “ainda bem que não te casaste, assim não tiveste esses problemas”.

Os seus sonhos dessa noite é que não concordaram com ela.

sexta-feira, outubro 27, 2006

O Boi Entre as Vacas

Um dia semi-adormecido...


… a ouvir falar de uma casa pastiche e aranhas peganhentas como animais de estimação.

Sim, a lentidão povoa-me hoje e tolhe-me os movimentos, particularmente os cerebrais, que assumo terem tirado um dia de folga, direito que lhes apraz e lhes assiste, mas com o qual eu não estou de acordo. Sou a favor da escravização dos movimentos cerebrais, contra o risco de degeneração em Alzheimer, e indiferente aos processos de fertilização das ratazanas dos laboratórios e da cerveja bávara.

O preciosismo é das maiores armadilhas que o ser humano pode criar a si mesmo e, ainda assim, é das tarefas mais interessantes em que o nosso cérebro se ocupa quando não está a pensar em sexo ou em comida ou em furnles.

Se relativizarmos o preciosismo, poderemos assumir que ele trabalha a velocidades distintas e, portanto, verifica as teorias do Einstein. Eu não existo em termos absolutos, pertenço a uma realidade paralela e nessa realidade chamo-me Laura (após a mudança de sexo). As questões ligadas à Física Quântica ultrapassam-me mas divertem-me, enchendo a minha imaginação de demónios saltitantes que se empoleiram nos galhos do limoeiro e atiram limões aos transeuntes. O tempo a velocidades variáveis é um primor, que a maioria da espécie humana nunca saberá entender, porque a humanidade entende o tempo como uma medida absoluta, coisa que não é. O tempo é variável, e isso está ligado a uma diversidade de variáveis e, porque não, a uma gama de cheiros, cores, e tipos de algodão.

Combinando a questão das realidades paralelas com o dos tempos variáveis, chegamos a uma interpretação absolutamente diferente da realidade. A realidade não existe, apenas existem realidades e barcos insufláveis como as bonecas, mas com bóias maiores. A profusão de realidades e a sua interpenetração surge como um desafio maior que adicionar chicória à cevada. Imaginemos que, em outra realidade tu atravessavas nas passadeiras. Isso não faria assim tanta diferença. Mas, se aliares isso ao facto de o tempo nessa realidade girar a uma velocidade que seja o dobro da que temos, aos teus olhos tu própria/o ias parecer duplamente demente, pois além de atravessares na passadeira, parecia que o farias de forma galopante e sem cocos. Notemos que ser demente é manifestamente diferente de ser senil. Pode não ser óbvio, mas é claro.

De uma forma cínica e homossexual, a conclusão a tirar daqui é que as papoilas são um primor à vista e à injecção. Nem de propósito, caem crisálidas do céu neste momento, coisa a que não posso assistir por estar num recinto fechado e negro. Mas sei porque as oiço e saboreio. Eis algo que faz os meus mamilos explodirem de prazer, mais ainda que a decapitação de um edil qualquer ou um ataque ao metro na estação da Trindade perpetrado por faunos elípticos e ursos hibernantes travestidos de esquilos, com o fito de declararem que nada sabem declarar por insuficiência renal do ministério da educação.

Eis a deixa para me retirar e sorver o orvalho engelhado pelas horas e ressequido pela brisa.

Avé

segunda-feira, outubro 23, 2006

Comentários Sobre um E-mail Recebido

Recebi hoje na minha conta de correio electrónico, uma dessas cartas reenviadas em série, com uma apresentação muito bonita em power-point, cheia de criancinhas (não, não tinha a ver com pedofilia nem palhaçadas). Associado a cada slide com as criancinhas aparecia uma frase feita sobre ser feliz. Sim, reparem bem no truque psicológico, a cada frase associar uma imagem que transmita a sensação de inocência, para ajudar a entrar na mente essa associação de ideias. Essa habilidade, utilizada no marketing há largas décadas, está ao alcance de qualquer um. Utilizar a imagem para fazer passar uma série de ideias. E como desconectar a felicidade da infância, sobretudo a de mais tenra idade. Nas nossas representações mentais, é difícil conceber infelicidade aos dez meses ou mesmo aos dois anos, pois a memória do nosso consciente é muito vaga sobre esses tempos. Então, se não nos lembramos de momentos de infelicidade, é por que éramos felizes. Essa ideia está longe de estar correcta, mas não é isso que pretendo aqui discutir.

Pretendo mesmo discutir as frases com as quais os meus olhos se depararam, a ponto de ter revisto a apresentação novamente para me certificar que não tinha lido mal.

Comecemos por esta: "Ser forte é amar alguém em silêncio" - Muito bonito, soa bem, apesar de aparecer ao lado da foto de uma criança de tenra idade que, como sabemos, está longe de estar em silêncio, fazendo um belíssimo uso dos seus pulmões. Mas amar em silêncio porquê? Porquê não expressar? Alguém que ame outrém e o diga é um fraco (seja homem ou mulher, que me perdoem os politicamente correctos, eu aqui não farei diferenciação de género, usarei apenas um dos sexos para poupar texto e ser mais prático)? Alguém que aguente amar outra pessoa e não o transmitir por medo de levar um 'não' é forte? A que propósito? Alguém que é correspondido e não transmite o que sente a quem está ao lado é forte ou é altivo? Alguém que pretende ter outra pessoa ao lado e não o diz é forte ou é medroso, ou mesmo cretino? Alguém que ama em silêncio é alguém que tem medo de si próprio, é alguém que tem medo dos seus próprios sentimentos, alguém que tem medo de amar. Isso é ser forte? O amor deve ser barulhento, deve gerar poesias, cânticos, baladas. O amor, por muito sofrimento que implique, traz em muitos momentos êxtase, alegria, carinho, afecto. Isto deve ser silenciado? Engraçado, se calhar devemos todos falar de futilidades, ou de tricas, ou de guerras, que demonstraremos ser fortes. Mas falar do amor que sentimos é sinal de fraqueza. Acho que já nem os machistas mais empedernidos assim pensam, é triste que sejam as mulheres a criar e transmitir estas supostas "verdades esotéricas e metafísicas" que em nada as engrandece. Mas vamos em frente, que há muito mais a caminho.

"Ser forte é irradiar felicidade quando se é infeliz" - Pois claro! Reparem no verbo. Irradiar. Pois bem, sendo irradiar emanar raios, os raios são energia, energia que vem de dentro. Ora, se nos sentimos infelizes, não conseguimos irradiar felicidade, por mais que tentemos ou simulemos tentar. Esta frase é de uma impossibilidade tremenda, uma contradição em si, mas deve fazer felizes todas as alminhas hipócritas que acham que nos devemos esconder atrás de nós mesmos, e que, mais uma vez, mostrar o que sentimos é sinal de fraqueza. Será isso que a Psicologia ensina, ou será precisamente o oposto? O que esta frase traz dissimulado em si é o conceito de enganar os outros, talvez como forma de nos enganarmos a nós mesmos. Além de mostrarmos o que não sentimos, o que nos configura como hipócritas, não mostramos o que sentimos, por acharmos que assim estamos mais protegidos. "Esconde-te e protege-te." Bom lema para a vida, para a vida de quem não pretende abandonar a sua caverna interior.

"Ser forte é tentar perdoar alguém que não merece perdão"- o que nos faria, supostamente, sentir em comunhão com Deus. Mas, se este, supostamente, fecha as portas do paraíso a quem não merece perdão, e se nós devemos seguir seus mandamentos, que curioso cenário... isto claro, é um raciocínio aplicável a crentes. Mas, se sairmos desta toada religiosa, convenhamos que esta é uma frase de bonito efeito, mas que não demonstra força ou fraqueza. Demonstra a capacidade de perdoar, que, contudo, deve ser bem medida. Se perdoarmos tudo e mais alguma coisa que nos façam, seremos meros joguetes neste mundo. Deve ser muito interessante dizer isto a um sobrevivente de Auschwitz, por exemplo. "Olha, pá, perdoa lá o Mengele pelas experiências médicas que ele fez em ti e aos nazis por terem morto toda a tua família". O facto de não perdoar alguém não significa que se acumule ódio contra esse alguém. Mas significa que não se está disposto a ser pisado e a continuar a sorrir alegremente como se não possuísse amor-próprio e auto-estima.

"Ser forte é esperar quando não se acredita no retorno" - Isto é como esperar ganhar o Euromilhões sem preencher o boletim. Isto não é ser forte, é ser imbecil. As pessoas até podem esperar, mas esperam quando acreditam, quando anseiam algo. Podem ser mais ou menos pacientes, mas esperam com o fito de atingir algo. Podem esperar por alguém ou por alguma coisa, mas aí acreditam em algo. Agora esperar por algo em que não se acredita, não é de quem é forte. É de quem é verdadeiramente incapaz de ir à luta. E fica à espera do que não vem, por incompetência, preguiça ou simples sonho que, por ser um sonho, impede de ver a realidade, e encarar a VIDA.

"Ser forte é sorrir quando se deseja chorar" - isto revela algum tipo de estado alterado da mente, aquilo que por vezes acontece em caso de descontrole emocional, por exemplo, num funeral de alguém de quem gostamos muito, e, por uma questão de nervos, rimos desenfreadamente, não porque estejamos contentes, mas precisamente porque não estamos bem. Portanto, ao sorrir quando se deseja chorar, ou isso é uma obrigação profissional, ou, mais uma vez, é hipocrisia, ou, em alternativa, é um caso de desiquilíbrio emocional. Seja de que forma for, é uma violência para com o nosso eu, é um afogamento do nosso "self", e é um mau indicador para as relações com terceiros, que se sentem baralhados. Mais uma vez, é uma fuga, é um esconderijo, é um exacerbar do medo, do medo de se ser o que se é, e se assumir assim perante o mundo, em vez de tentar representar um papel, um papel que achamos que é equivalente à expectativa que os outros têm de nossos actos.

"Ser forte é fazer alguém feliz quando se tem o coração em pedaços" - pode até acontecer, não acho tanto que seja uma demonstração de força, mas uma demonstração de altruísmo, ou uma demonstração de amizade ou amor. Claro que, se continuamente caminhamos com o coração em pedaços, é inevitável que as pessoas que se encontram ao nosso lado, nas mais variadas formas, se sintam afectadas com isso. Mas também lá deverão estar para ajudar. Assim como é possível que consigamos ajudar os outros, estando nós próprios em baixo. Se isso é ser forte, é que já acho discutível...

"Ser forte é calar quando o ideal seria gritar a angústia" - então, ser forte é ser mudo, ou ser incapaz de exprimir os seus próprios sentimentos. Se alguém se sente angustiado, guardar dentro de si a angústia, em vez de a extravasar, conversando com um amigo, com o parceiro, com a família, ou de qualquer outra forma, é, acima de tudo, uma desnecessária forma de infligir auto-sofrimento, é assumir que não se deve expor nunca o nosso mal estar perante o que ou quem nos rodeia. Ser forte é engolir em seco, é acumular mal-estar? Ser forte é castrar a palavra? Desde quando ser forte é a proclamação de um bem-estar fajuto e não sincero, desde quando ser forte é tornar-se um ser fechado ao exterior, vivendo em sua própria redoma, insuflando aparências? Isto é ser forte? Não, isto é ser um calhau com olhos.

"Ser forte é consolar quando se precisa de consolo" - boa desculpa para dar a quem só está habituado a receber... Confunde-se aqui o conceito de "força" com "afecto" ou "ternura". Por outro lado, repare-se neste singular facto oculto: se eu estou a consolar alguém, mesmo que eu precise de consolo, é porque esse alguém também precisa, ou estaremos perante um caso de loucura mútua. Ora, seguindo a linha de raciocínio da "sábia" frase citada entre aspas no início do parágrafo, se eu estou a consolar alguém porque esse alguém precisa, esse alguém vai me consolar a mim também, pelo que temos aqui um caso de partilha e entrega. Força?

"Ser forte é manter-se calmo no momento do desespero" - sem discordar inteiramente desta frase, diria antes que, mais que força, é um caso de inteligência emocional, é um caso de frieza. Em alguns casos pode ser também reflexo de ausência de escrúpulos, mas, vá lá, esta passa...

"Ser forte é demonstrar alegria quando não se sente" - em contrapartida, esta poderia ter saído da boca de um jumento, sem ofensa para o animal. Demonstrar o que não se sente é o que faz de nós mentirosos, hipócritas, cínicos, falsos. Como se pode demonstrar algo que não se sente, a não ser que se seja um brilhante actor, mas fora do palco ou das telas? Será querer transformar a vida, à força numa representação, numa vida virtual, num amontoado de mentiras e de receios, numa confusão em que nos percamos, em que deixemos de saber verdadeiramente o que somos, em que não saibamos mais agir naturalmente, em que sintamos necessidade de adornar ou falsear a realidade, qual Edith no seu diário, como lindamente escreveu Patrícia Highsmith? Demonstrar o que não se sente é, pouco a pouco, assumir a falsidade como o nosso estado natural, é a palmadinha nas costas do outro, em vez de lhe dizer que também estamos tristes e temos problemas. Claro que isto pode se traduzir como aparentar ser forte, mas então este remédio é o ideal para quem tanto gosta de viver de aparências. A melhor forma de se ganhar força, de nos auto-conhecermos, é assumirmos os nossos problemas e as nossas fraquezas, e não mascará-las com um sorriso de máscara.

"Ser forte é ter fé naquilo que não se acredita" - por essas e por outras é que eu, já de prevenção, comecei a acreditar em coelhos voadores que comem vacas e vão à manicure três vezes por semana. Sim, isso faz-me sentir forte, um verdadeiro cavalo de força, um motor de um foguete aeronáutico, um vulcão em explosão! Eu tenho fé numa centopeia gigante que canta óperas de Wagner e que se veste de marinheiro às quintas-feiras. Eu tenho fé em árvores galopantes, que crescem até aos 5000 metros de altura e que arrotam ao meio-dia como forma de expressar a sua gratidão por cada centímetro a mais. Ter fé no que não se acredita é desespero ou estupidez, ou ambos. Não é ser forte, é estar em permanente delírio. Aliás, é um enorme sintoma de fraqueza. Mental.

Resumindo, se queres ser forte, questiona parvoíces como esta que enviam aos incautos. E, aconselho, sobretudo, às mulheres, por formação cultural, a serem mais críticas no tratamento deste tipo de informação. Podem dizer que estou a ser machista, ou parcial, mas acho sintomático que todos estes tipos de e-mail que eu recebo, assim com umas frases feitas mal cortadas e ainda pior cosidas, me sejam enviadas por mulheres. Pode ser devido à forma fast-food como as consomem, mas nem isso, no meu caso, evita um difícil digestão, com um provável vómito pelo meio.

Ser forte, afinal, até pode passar por ser reflexivo e crítico e não ter pejo em se conhecer a si mesmo.

Ou então, e terminando com um pouco de ironia, "ser forte é estar seguro pelas mãos num precipício e bater palmas quando chega alguém para nos salvar"

quarta-feira, outubro 18, 2006

Reflexão Sobre a Cegueira

Em baixo do telhado não chove, excepto, talvez, naquele rebordo do patamar em que está a goteira, a goteira pinga e se alguém se coloca lá em baixo acaba por molhar a cabeça, quer dizer, pode também molhar os pés ou a barriga se esta for proeminente, ou as mamas, se for uma mulher bem guarnecida, como o meu almoço foi bem guarnecido de legumes.
Não, não chove, embora se possa observar com cuidado e calma a cadência das pingas que caem, a uma velocidade variável, ora empurradas pelo vento, ora deixadas à sua sorte, embora isso seja indiferente para quem olha, é apenas mais uma gota, tanto faz se cai no capôt do carro, se cai no chão, em cima da árvore, ou se baila até se perder da nossa vista.

Falando em vista, tenha-se em conta que o pior cego pode não ser o que não quer ver, mas este é o mais difícil de tratar, pois é aquele que se rejeita a aceitar o diagnóstico, não se apercebe da sua cegueira, continua a cavalgar na sela já desapertada e gasta, com os freios corroídos, e em cima de um cavalo que tem pernas de pau.
O cego não tem tempo nem paciência para apreciar uma gota de chuva, nem tão pouco um pássaro a cantar, porque está envolto na sua cegueira que, com frequência, é uma cegueira que causa deslumbramento. O cego envolve-se em cada vez mais coisas, vai enchendo o seu tempo com grandes coisas que não passam de pequenos nadas, vai tendo uma vivência social cada vez mais fútil e vazia, vai preenchendo os seus tempos livres com ocupações que lhe permitem nunca parar para pensar e observar que cegou, o que causou a cegueira e como dela sair.

Para o cego, os que o rodeiam é que vêem mal, é que não compreendem, é necessário, tem mesmo que ser assim, não se pode parar, é só durante uns tempos, nem sequer é um glaucoma, nem cataratas, é mesmo uma cegueira completa, que o deixa olhar, mas nunca ver, e pensar que assim é que está certo. O cego que cria o seu ambiente de contactos sociais para levar adiante mais um projecto, para rir, para não se sentir só, para fugir. O cego foge, foge por uns dias, foge para não aceitar a realidade, para não enfrentar a solidão em que a sua cegueira o foi imbuindo. O cego vai preenchendo os tempos, numa incessante fuga para a frente. Na frente, de forma invariável, está um penhasco ou uma parede de granito, mas o cego não vê. O cego vê deslumbramento e é nos efeitos da sua cegueira que pensa vir a encontrar a sua auto-estima. E encontra-a, embora de forma fugaz, porque esta auto-estima é curta, não chega para lhe restituir a visão, para vislumbrar que já não está debaixo do telhado, nem sequer já se ouve o barulho da goteira a pingar.

É só mais um bocadinho, tenta entender, diz o cego a cada não invisual que o rodeia, que se deprime ao ver o cego que não se apercebe que está cego, que tem necessidade de se afastar para não ver os resultados da cegueira, para não ouvir o estranho silêncio no intervalo das gargalhadas dos outros cegos que rodeiam o cego. Os cegos unem-se em torno de um objectivo comum: ignorar a sua cegueira, e continuar a desconhecer onde caem as gotas de chuva. Levam assim adiante os seus planozinhos aos quais atribuem uma descomunal importância, falam das suas pequenas quezílias como se isso fosse uma declaração de uma guerra nuclear e competem por um lugar ao sol, sem darem conta que esse lugar existe, com um martelo na mão a partir pedra e o sol não tem piedade.

Nem nós devemos ter piedade desses cegos; eles assim são porque assim quiseram ser, porque as suas projecções da vida os levaram a desligar-se da mesma, vivenciando uma espécie de existência virtual, paralela a algo que eles sabem estar dentro deles mesmos, mas que não se deixam ver, porque a cegueira os dominou.
Pode ser, pode ser que quando os rios secarem ou estiverem poluídos, os cegos se dediquem a beber dinheiro e a comer fama, a saborear o sucesso ou os resultados da sua carreira, pode ser que os cegos coloquem todos os seus diplomas e resultados operacionais no prato e acompanhem com uma salada de reuniões e pudim de projectos. Para terminar, nem chá nem café, que água não haverá, mas um simpósio. Em pó. Pois a chuva, essa, terá cessado de cair lá fora, mas toldar-lhes-à a alma até ao momento final. Ainda que sob a forma do eterno nevoeiro em que viverão, nunca mais se dissipando ou, mesmo que haja uma esperança, é necessário que os olhos se abram e que eles reaprendam a ver.

Deixemos, deixemo-los assim: no final, serão eles a pagar a conta. Do restaurante e do oftalmologista.

domingo, outubro 08, 2006

Quem muito corre se cansa

Em caso de incêndio quebre o vidro, se quebrar o vidro e se cortar, sangrará. Para estancar o sangue use um garrote e para desinfectar a zona, água oxigenada e mercurocromo. Se apertar demais o garrote, poderá parar a circulação. Para retomar a circulação, massaje a zona. Ao massajar a zona, poderá danificar a pele. Danificando a pele, utilize produtos de beleza ou vá a um cirurgião efectuar uma plástica. Para pagar essa despesa tem que trabalhar. Para trabalhar tem que ter saúde e tempo. Saúde não tem, queimado, cortado e com má circulação. Tempo? Terá tempo? Quem tem tempo? O tempo não se troca, não se negoceia. Parece, parece que sim quando somos novos, parece. Parece que o tempo dá para tudo. Eu tenho tempo para todas as coisas que quero fazer, tanto tempo tenho que não faço nada. E não fazendo nada, fico cansado de nada fazer. O que leva à necessidade de descansar. Descansar sem saúde ainda é possível e pode ajudar a recuperar. Mas, se não há tempo, como arranjar o tempo para descansar?
Vem daí mais um projecto, vem daí mais uma hercúlea tarefa, mais dias em que o horário de oito horas é estendido, em que se entra mais cedo, se sai mais tarde e ainda se leva trabalho para casa. Dias em que comemos o tempo junto com a refeição e a televisão ligada, comemos o tempo junto com os filhos famintos. Não de tempo, mas de afeição. Não há tempo, mas há uma consola, um computador, vai brincar para o quarto e não me chateies, não tenho tempo, tenho aqui umas coisas para tratar, para a semana vou para fora, sim, querida, eu sei que estou sempre a ausentar-me, são só 3 semanas desta vez, é importante, tu sabes disso. Eu trago um presente para os miúdos, não te preocupes, não me esqueço, o que é que a Rita gosta?, som, claro, eu trago, e não me esqueço de ti também, apesar de ser sempre tudo a correr, e depois aqueles jantares, eu sei, eu tento ligar, tu também não tens tempo, tens tanto para fazer, no escritório as coisas estão complicadas, ainda assim tivemos sorte em ter este ATL aqui perto, e com o horário de funcionamento alargado. Nas férias vamos a Veneza, tem de ser em Agosto, dá jeito aos dois e também ao Marco e à Carla, eles vêm com a gente este ano, não é?
E a circulação continua má, o sangue ainda não parou, mas não há tempo para ver isso, a noite é tão bonita, os prédios com as luzes acesas, ontem almocei com o Sérgio. Ele não anda lá muito bem, acho que o casamento dele está mal há já algum tempo e, além disso, o pai dele está com cancro na próstata, coitado, ainda não é assim tão velho, a mãe dele anda desconsolada, e eu imagino a situação dele, claro que nessas alturas apela-se sempre para o lado positivo das coisas e eu lembrei-lhe do quanto ele tinha sorte a ascender a Administrador da empresa, ele sorriu-me de forma amarga e disse “sorte e dor de cabeça”, eu percebo, tira-lhe o tempo, mas um homem tem que trabalhar, e eu aproveito o trabalho para viver, eu realizo-me tanto no que faço, há quem me chame de viciado, não é uma questão de vício, as pessoas não entendem que têm que ser assim, o mundo hoje é assim, trabalhar até morrer, ficar por cima para não ficar por baixo, não se pode parar, e eu até gosto do que faço.
Mais um Natal, a minha mãe está num lar, e eu e a Júlia achamos que era um grande incómodo trazê-la para casa, assim é menos trabalho, e eles no lar cuidam bem dela, a Rita está quase na faculdade agora, como o tempo passa, ela anda distante, mas ainda é a minha menina, eu sei que não tenho parado muito em casa, mas no Natal estou sempre presente, nas férias mais ou menos, eles nem sempre passam as férias connosco, já nem me lembro bem quando foi a última vez que o Paulo veio com a gente, lembras-te querida, ainda o sangue corria pelo corte da pele, agora são umas gotas esparsas, a faculdade à porta, temos sempre o fim de semana para fazer amor, durante a semana é sempre difícil, chegamos ambos cansados, e eu gosto muito de ver os filmes do canal de cinema da televisão por cabo, e tu deitas-te no quarto a ver a novela e o concurso, às vezes adormeces, também já me aconteceu a mim, isto quando um de nós não tem que trabalhar ainda mais.
A Rita casou e fizemos uma festa de arromba, o Paulo foi estudar para outro país e por lá ficou, o trabalho não corre lá muito bem, já não me desloco tanto ao estrangeiro porque há contenção de despesas, e tu, minha querida, tu andas com um ar abatido, devias consultar um médico, se calhar duas semanas de férias para um cruzeiro calhavam muito bem, no fundo não temos do que nos queixar, gozamos bem a vida, boas casas fomos tendo, bons carros, boas roupas, dinheiro para despesas, férias em hotéis dispendiosos e bem situados, nos mais exóticos lugares, alguns deles hoje interditos, mas é bem verdade que o sangue já não corre como dantes, nem sempre tivemos muito tempo para passarmos juntos, mas tu sempre foste tão compreensiva, e já falta pouco para me reformar e podermos viver à larga e fazer o que sempre quisemos e que nunca houve tempo.
Agora tenho tempo, tenho tempo, a empresa acabou por me mandar embora, mas com uma choruda indemnização, o problema é que tu, minha querida, tu tinhas que adoecer logo nessa altura, aqueles enjoos não eram normais afinal, e não te valeu de nada a operação, e eu senti como nunca tinha sentido que o tempo passara e eu mal te conhecera e deixara esmorecer a paixão, e deixara soterrar o amor em mais uma reunião, em mais um projecto, deixara de tocar o teu corpo com frequência e de sentir o teu abraço todos os dias, não houvera tempo e ainda hoje não sei qual era o teu prato favorito, que parte do frango preferias, qual o cantor que mais admiravas, tudo porque não tive tempo para estar contigo e te perguntar, estar contigo e te acarinhar, eu estava contigo e pouco falava e me concentrava em tanta coisa que não te dava um afago, que nem era por mal, mas era porque o tempo só dava para mim, e agora que estou só e o tempo sobra sinto a falta do outro tempo, do tempo que gastei com as minhas coisas, sem o gastar comigo, sem o gastar contigo, e apenas no teu leito te vi e me senti assim, e agora finjo que vivo, só que o incêndio que dentro de mim ardia já se extinguiu há muito tempo, e o sangue parou de correr.
Eu vivi como bem quis e entendi, mas o que eu queria e entendia era bem diferente do que eu precisava. Eu precisava de tempo. E sempre achei que tinha tudo. No final, sobrou foi nada.