Saturação, Sim, Não
Os momentos de saturação são uma faca de dois gumes, um pau de dois bicos, ou uma moeda com duas faces.
Por um lado, deixam-nos em baixo, inibem-nos as capacidades de reacção, pioram a nossa disposição e fazem criar uma sensação de que nada à nossa volta está bem.
Em simultâneo, são um convite à reflexão, quer interna, quer externa. Quando estamos saturados, tendemos a descarregar em quem nos rodeia, e tendemos a tentar afastar quem e o que entendemos que não se enquadra no panorama geral. A questão é que o que não se enquadra aparentemente no que nos rodeia pode ser o nosso ponto de equilíbrio. O nosso contraponto.
Se deixarmos que a saturação se aloje em nós por muito tempo, é conveniente acharmos uma forma de a exprimir. Que não seja uma das tradicionais formas de o ser humano lidar com esse tipo de situação.
Tendemos a pensar que estamos cansados, mas o cansaço é profundo. Deixamos que esse “cansaço” se reflicta nas nossas relações, e, se temos a mente imbuída do espírito ultra-capitalista que vigora nos dias de hoje, primeiro sofrem as relações pessoais, depois as de amizade e, só no fim, as profissionais. A pirâmide invertida é um erro, claro. Não são os nossos colegas de trabalho que nos servem de encosto à cabeça todos os dias, nem quem entende o nosso choro ou um desabafo. Contudo, tentamos sempre não prejudicar as relações de trabalho, ainda que as pessoais vão ficando para trás.
É uma questão de romper o ciclo, de ter coragem de enfrentar o real problema. Isso é o mais difícil. É mais fácil ir dormir mal disposto e mal disposto acordar do que pensar que, se calhar, há pequenas e grandes coisas que devemos encarar na forma de lidar com o mundo.
Há uma obscura música dos Xutos & Pontapés, denominada “A Velha Canção da Cortiça”, que, a dado passo diz:
“No ciclo da produção
Acelera-se o consumo
Para dar a sensação
De que esta vida tem rumo
E tudo, tudo, se repete
Seja em nove anos ou num só dia
E só nos velhos se reflecte
O extorquir da mais valia
Vai, da roda sai
Rompe o cerco e vai
Quebra o ciclo e sai”
Trata-se disso, de romper o ciclo, para não terminar como o personagem principal do livro “1984”, naquele universo que tendemos a identificar com os regimes totalitários, mas que, cada vez mais, se assemelha às nossas “desenvolvidas” sociedades ocidentais.
Romper com o velho implica criar um novo paradigma. Mas, primeiro, as nossas estruturas mentais têm que criar a necessária flexibilidade que nos permita albergar esse novo paradigma, enquanto o velho é expelido. Senão, iremos rejeitar esse paradigma, mesmo que seja dele que necessitemos.
Sim, é sempre mais fácil eliminar o diferente, afastar quem achamos que nos está a perturbar o mundo. Talvez até seja a primeira reacção. Quantas vezes não evitamos os amigos que nos dizem as verdades mais cruas e procuramos aqueles que concordam acriticamente com tudo o que digamos? Isso para tentar insuflar artificialmente o nosso ego, tentar fazer aumentar o nosso amor próprio, em vez de fazermos o oposto. Se alguém nos ouve e não concorda e expõe a sua discordância, é alguém que mostra que nos ouviu, é alguém que se preocupa o suficiente para nos apontar o que pensa não estar bem e é alguém que tem a coragem de o assumir.
Todos fazemos asneiras na vida. Uma das maiores é pensarmos que a saturação é algo como o cansaço. O cansaço pode se resolver com umas férias em que nada se faça. A saturação lá continua. E, muitas vezes, estamos saturados do que fazemos e não de quem nos rodeia. Mas é mais fácil mandar borda fora as pessoas que nos apontam o dedo do que repensar a nossa relação com o trabalho e o mundo.
Devíamos todos viver mais devagar, sem a obsessão da velocidade, com mais tempo para quem nos rodeia e para pequenas coisas que fizeram parte da nossa existência durante milénios, como longas conversas e menos tempo para problemas e ambições e projectos que configuram personalidades cada vez mais individualistas, egoístas e sós.
Como dizem os Titãs, na sua música Epitáfio
“Devia ter complicado menos, trabalhado menos
Ter visto o sol se pôr
Devia ter me importado menos com problemas pequenos
Ter morrido de amor
Queria ter aceitado a vida como ela é
A cada um cabe alegrias e a tristeza que vier
O acaso vai me proteger
Enquanto eu andar distraído
O acaso vai me proteger
Enquanto eu andar”
Pensemos bem e tentemos levar a vida de forma mais distendida…