Stress, Depressão & Síndrome de Pânico

Nome:

sou um pardal ateu e é isso...

sexta-feira, setembro 29, 2006

Saturação, Sim, Não

Os momentos de saturação são uma faca de dois gumes, um pau de dois bicos, ou uma moeda com duas faces.

Por um lado, deixam-nos em baixo, inibem-nos as capacidades de reacção, pioram a nossa disposição e fazem criar uma sensação de que nada à nossa volta está bem.

Em simultâneo, são um convite à reflexão, quer interna, quer externa. Quando estamos saturados, tendemos a descarregar em quem nos rodeia, e tendemos a tentar afastar quem e o que entendemos que não se enquadra no panorama geral. A questão é que o que não se enquadra aparentemente no que nos rodeia pode ser o nosso ponto de equilíbrio. O nosso contraponto.

Se deixarmos que a saturação se aloje em nós por muito tempo, é conveniente acharmos uma forma de a exprimir. Que não seja uma das tradicionais formas de o ser humano lidar com esse tipo de situação.

Tendemos a pensar que estamos cansados, mas o cansaço é profundo. Deixamos que esse “cansaço” se reflicta nas nossas relações, e, se temos a mente imbuída do espírito ultra-capitalista que vigora nos dias de hoje, primeiro sofrem as relações pessoais, depois as de amizade e, só no fim, as profissionais. A pirâmide invertida é um erro, claro. Não são os nossos colegas de trabalho que nos servem de encosto à cabeça todos os dias, nem quem entende o nosso choro ou um desabafo. Contudo, tentamos sempre não prejudicar as relações de trabalho, ainda que as pessoais vão ficando para trás.

É uma questão de romper o ciclo, de ter coragem de enfrentar o real problema. Isso é o mais difícil. É mais fácil ir dormir mal disposto e mal disposto acordar do que pensar que, se calhar, há pequenas e grandes coisas que devemos encarar na forma de lidar com o mundo.

Há uma obscura música dos Xutos & Pontapés, denominada “A Velha Canção da Cortiça”, que, a dado passo diz:

“No ciclo da produção
Acelera-se o consumo
Para dar a sensação
De que esta vida tem rumo

E tudo, tudo, se repete
Seja em nove anos ou num só dia
E só nos velhos se reflecte
O extorquir da mais valia

Vai, da roda sai
Rompe o cerco e vai
Quebra o ciclo e sai”


Trata-se disso, de romper o ciclo, para não terminar como o personagem principal do livro “1984”, naquele universo que tendemos a identificar com os regimes totalitários, mas que, cada vez mais, se assemelha às nossas “desenvolvidas” sociedades ocidentais.

Romper com o velho implica criar um novo paradigma. Mas, primeiro, as nossas estruturas mentais têm que criar a necessária flexibilidade que nos permita albergar esse novo paradigma, enquanto o velho é expelido. Senão, iremos rejeitar esse paradigma, mesmo que seja dele que necessitemos.

Sim, é sempre mais fácil eliminar o diferente, afastar quem achamos que nos está a perturbar o mundo. Talvez até seja a primeira reacção. Quantas vezes não evitamos os amigos que nos dizem as verdades mais cruas e procuramos aqueles que concordam acriticamente com tudo o que digamos? Isso para tentar insuflar artificialmente o nosso ego, tentar fazer aumentar o nosso amor próprio, em vez de fazermos o oposto. Se alguém nos ouve e não concorda e expõe a sua discordância, é alguém que mostra que nos ouviu, é alguém que se preocupa o suficiente para nos apontar o que pensa não estar bem e é alguém que tem a coragem de o assumir.

Todos fazemos asneiras na vida. Uma das maiores é pensarmos que a saturação é algo como o cansaço. O cansaço pode se resolver com umas férias em que nada se faça. A saturação lá continua. E, muitas vezes, estamos saturados do que fazemos e não de quem nos rodeia. Mas é mais fácil mandar borda fora as pessoas que nos apontam o dedo do que repensar a nossa relação com o trabalho e o mundo.

Devíamos todos viver mais devagar, sem a obsessão da velocidade, com mais tempo para quem nos rodeia e para pequenas coisas que fizeram parte da nossa existência durante milénios, como longas conversas e menos tempo para problemas e ambições e projectos que configuram personalidades cada vez mais individualistas, egoístas e sós.

Como dizem os Titãs, na sua música Epitáfio

“Devia ter complicado menos, trabalhado menos
Ter visto o sol se pôr
Devia ter me importado menos com problemas pequenos
Ter morrido de amor
Queria ter aceitado a vida como ela é
A cada um cabe alegrias e a tristeza que vier
O acaso vai me proteger
Enquanto eu andar distraído
O acaso vai me proteger
Enquanto eu andar”



Pensemos bem e tentemos levar a vida de forma mais distendida…

quinta-feira, setembro 28, 2006

A Falta da Falta da Falta (VI)

De uma forma ou de outra, foi se embrenhando mais e mais no seu trabalho. Acontece é que, à medida que as rotinas se instalavam e se sucediam, até as novidades lhe cheiravam a velho. E na velhice estavam também os seus pais. Perdera o fôlego para uma série de coisas. A felicidade que sentia em cada descoberta nova, em cada projecto concretizado, soava-lhe sempre mais efémera que a felicidade das suas amigas quando falavam nos filhos. Havia altura em que essas conversas a seduziam, e outras em que a incomodavam.

Uma noite sonhou. Sonhou com ele. Ele estivera ali, ao seu lado, e lhe dissera palavras ao ouvido enquanto ela dormia. Mas, abertos os olhos, ninguém a não ser ela na cama. Foi à cozinha beber água, e sentiu um arrepio. Voltou ao quarto e tentou se recordar das palavras... tinha quase a certeza que ele tinha dito “vem-me visitar”, mas que essa frase fora precedida de outra que ela não conseguia recordar. Tinha a certeza que ouvira mais coisas, mas não conseguia se lembrar. De qualquer forma, fora apenas um sonho. Ainda teria... ainda teria sentido aquela lembrança? Porquê ele? Porque não outro?
Onde teria ela guardado os textos que ele lhe escrevera? Estavam em algum caixote... levantou-se e tentou encontrá-los, mas, nada...
Amanhecera. Pouco dormira. E sentia algo dentro de si a latejar.

Mais um dia de trabalho, mais um de dia de vida. Os constantes vai-véns ao estrangeiro perderam a aura de encanto que haviam tido em outros tempos. Se antes se pelava toda por ouvir palestras, dar o melhor de si, jantar com alguns participantes e ir a um bar uma por outra vez, observava agora que encarava tudo isso como um enfado. Ia cedo para o quarto do hotel e lá, sonhava uma por outra vez enquanto tomava banho. Os sonhos nocturnos, quando deles se lembrava, passavam amplas vezes por choro de crianças. Algumas vezes, sentia que possuía uma existência paralela, em que a sua vida tinha tomado um outro rumo. Sonhava com outras paisagens, que por certo não se situavam no hemisfério norte. Sonhava com pessoas que nunca vira, mas nesses sonhos era notória a marca de existência de uma família. Às vezes sonhava com discussões, algumas brigas feias. Sonhava também que era amada. Que era compreendida.

Ela não tinha tido a sorte de encontrar um marido que a apoiasse. Nem todas tinham sorte na vida. Mesmo muitas de suas amigas não percebiam a necessidade que ela sentia de se dedicar afincadamente ao seu trabalho. Por vezes, particularmente durante a noite, ela própria ficava baralhada com essa dedicação. Lembra-se de uma frase que dissera uma vez: “Se calhar as outras têm maridos que as apoiam!”. Ele respondera-lhe: “Procura um.” Isso fora há já muitos anos. Ele nessa noite falara-lhe no efeito bola de neve que a dedicação ao trabalho iria causar na sua vida. Que ela não daria conta de como se ia envolver mais e mais, deixando o resto para segundo plano. E também dissera que as pessoas normalmente não acreditam quando alguém as avisa disso. E ela, de facto, não acreditara. Como de costume, achara um exagero. Apesar de as palavras não terem sido essas, estava certa que o que passara na cabeça dele quando lhe dissera essas palavras é que as pessoas se embriagavam com a carreira, e, por não terem a lucidez devida, não vislumbram como vão esquecendo o mundo dos afectos. No fundo ela também não tinha acreditado. Tantos anos passados e sabia que ele tinha errado. Por defeito. A realidade era ainda mais cruel. A solidão era portadora de uma amargura asfixiante, que lhe afunilava os dias.

Estúpido, imbecil! Por certo, a vida o castigou com força. Quer ele quisesse, quer não, com os ideais dele, seria sempre um pobretanas. Quem se iria interessar por ele? Estúpido, palerma sem ambição! Estúpido, estúpido! Onde estás, onde estás, seu estúpido, seu parvo? Abraça-me...

Pequeno Alerta À Navegação

Esta breve crónica tem a sua origem numa ainda mais breve conversa que hoje tive, e que acho que revela bem como, frequentes vezes, as pessoas criam sobre nós expectativas que nós não temos a ocasião de cumprir.

Uma pessoa amiga acha que eu devo me dedicar mais à escrita, que escrevo muito bem, mas que devia encetar o projecto de levar um livro adiante, que devo isso a mim mesmo, que saltito muito de tema em tema, e por aí vai.

Bom, quanto às parcas pessoas que acompanham os textos que vão sendo colocados com uma cadência mais que incerta neste blogue, eu não sei, mas quanto a mim, não vejo as coisas dessa forma.

Um projecto pode ser algo muito interessante e mesmo aliciante, mas ninguém pense que me coloca a ver e, sobretudo, sentir a escrita como tal, antes de mais, porque eu não me vejo como um escritor, algo que não sou, mas antes como um ser humano com diversas facetas, e que gosta de garatujar umas frases soltas no papel ou de as matraquear no teclado de um computador, para dar forma a alguma coisa meia estranha e vagamente definida que aparece no já vetusto monitor que se encontra diante de meus olhos.

É certo que espraio essas frases sem grande dificuldade; poucas vezes me detenho a pensar “o que devo escrever” e muito raras vezes planeio o que vou escrever, e nunca a forma sob a qual vou escrever. Isso tem a vantagem de eu o fazer por gosto, e, talvez, por necessidade, necessidade de exprimir e partilhar algo do que vou retendo no mundo. Não pretendo ser conhecido; muito pelo contrário, prezo muito o anonimato e a placidez de uma vida pacata. Sei o quanto isto vai em contracorrente em relação ao pensamento dominante, mas não tenho a mínima ambição em relação à escrita, nem a quero transformar num compromisso sob forma alguma.

Prefiro as pequenas felicidades do dia a dia que tanto são desprezadas pelas pessoas que vivem diariamente em busca da felicidade, que batalham incessantemente por ela, que não conseguem olhar para os pingos de chuva que caem e ver nisso nada mais que um incómodo. Desprezo o ritmo devorador dos nossos tempos, e que nos devorará a todos a prazo.

Por outro lado, o saltitar de tema em tema, tem a ver com a pluridimensionalidade que qualquer um de nós tem, mas que geralmente não sente ou sabe, porque se confina à sua vida profissional e a planear coisas, objectivos, fins, acantonando a sua sensibilidade num qualquer território mal explorado e que não apareça em qualquer mapa.

Lá está, não fui feito para viver neste mundo, mas isso é um problema do mundo, não é meu. Agora, não criem expectativas a meu respeito, sobre grandes coisas que eu hei-de escrever ou ser muito conhecido ou seja lá o que for. Todas elas sairão furadas. Eu escrevo enquanto quiser e gostar de escrever, escrevo desta forma artesanal porque é aquela que vem de dentro de mim e não porque em algum instante eu me preocupe se as pessoas irão apreciar mais ou menos isto. Aqui no mundo Ocidental, vivemos muito preocupados com a imagem que queremos que os outros criem de nós, esquecendo aquilo que realmente somos. Vocês até podem viver assim; não é um problema que me aflija. Eu, politicamente incorrecto, repito, gosto de ser “ninguém” e de assim poder ter tempo para apreciar pequenos momentos e vivências.

Há uma coisa, porém, em que concordo com essa minha amiga, mas concordo de forma prévia: eu estou a escrever um livro; acontece é que nada tem a ver com quase nenhuma das crónicas que aqui vou publicando e faço-o porque me dá gozo e não porque ache que me vai dar dinheiro ou reconhecimento.

E, por ora, é isto. Apreciem (ou não) o que aqui vão lendo, mas pensem sempre que não passa disto mesmo: textos soltos e simples, e que é por isso que os escrevo, porque são soltos e simples. E nada mais.

terça-feira, setembro 26, 2006

Sim, Lembro-me

Lembro-me de ti, lembro-me do quarto com as paredes brancas, tu deitado, com os tubos que te entravam pelas veias e te invadiam o sangue, sangue já fraco e dilacerado. Lembro-me da tua voz, que já nem fio era, quando muito um fiapo, a saudar-me à chegada, na lucidez que mantiveste até ao derradeiro momento. Lembro-me das mãos esquálidas, do já então delgado peito, da palidez do rosto e do odor ao que te consumia e de ti se evaporava nas tuas exangues glândulas sudoríparas.

Lembro-me do teu olhar, vagamente vazio, e a carregar a imensidão dos dias passados. Um olhar que feria o nosso, não só pela profundidade que exalava, longe dos tempos em que exultava alegria ou espraiava a sua avidez de compreensão e de conforto, que, um dia, finalmente satisfizeste. Lembro-me de quando conheceste a tua mulher, de como foi amor à primeira vista, de como se afeiçoaram, se apegaram e se entregaram.

Lembro-me de me contares as suas visitas diárias, bem como da dos teus filhos, e do quanto eles se esforçavam para te trazer doces às escondidas, e de como regalado os comias, ainda que horas depois os vomitasses, na insuportabilidade que teu estômago demonstrava em receber o que a tua mente tanto prazer tinha em ingerir.

Lembro-me de me tomares como confessor e quereres que eu escutasse teus erros, tua imensa dor de sentires que falharas, de me revelares momentos de angústia e dor, momentos que viveste e que te deixaram marcas, e sobretudo, lembro-me de partilhares comigo a imensa lástima que sentias em teu mais profundo interior, em cada canto de nós mesmos que parece apenas admitirmos que existe nessas horas em que o manto negro do fim se aproxima para nos envolver e não mais largar.

Lembro-me do teu remorso, remorso por não teres passado mais tempo com teus filhos, por estares ausente em aniversários, fins de semana e intermináveis noites à semana. Lembro-me de como a alegria te teus inúmeros projectos se foi atenuando com o passar dos anos, e lembro-me que eu dera conta dessa transformação em ti muito antes de tu te aperceberes, sequer, que estavas vagamente diferente.

Lembro-me de me falares com orgulho e ânsia da tua mulher, do quanto ela foi tua companheira, do quanto ela te mostrou que tu não conhecias, do quanto ela colocou travão em teus desvarios, do quanto ela suportou tuas ausências, tua falta de entrega aos filhos e a ela mesma. Lembro-me de me dizeres que a admiravas, por, mesmo com tudo isso, ela continuar sempre presente, e não esmorecer ante o avanço imparável da doença, antes vir plena de uma força que nenhum de nós sabia de onde brotava.

Lembro-me do teu filho mais velho a entrar um dia em que dormias, te segurar em tua mole mão, sussurrar “pai” e ali ficar até terminar a hora da visita, teus olhos permanecendo cerrados e vossas mãos unidas.

Lembro-me da tua mulher me agradecer cada visita que te fiz, cada instante em que te acompanhei em teus momentos finais, de ter sido o primeiro a dar os sinais de alerta que tu tanto fizeste questão de ignorar, afirmando serem incómodos passageiros. Lembro-me de ela me pedir para segurar uma alça do teu caixão quando te fosses para não mais voltar.

Lembro-me de me revelares as tuas vontades, de dizer que trocarias todo o dinheiro e posses que lhes deixavas por mais um dia com todos eles, por uma série de pequenas coisas às quais nunca deste o valor e que, inclusive, ironizavas comigo por eu as entender como fundamentais. Lembro-me de te culpares por tantas vezes gozares as tuas férias separadamente da tua família, de insistires em estar com teus amigos em restaurantes e bares, em vez de os levares a tua casa.

Lembro-me das lágrimas que escorreram por teu rosto sem cessar, quando pediste perdão à tua filha mais nova por nunca teres tido tempo para lhe ler histórias ao deitar, por sentires que ela tanto tinha pedido a tua presença, e tu, tentando compensar a falta de tempo que nunca é compensável nem reciclável, nem admite trocas, lhe oferecias mais uma boneca ou lhe davas dinheiro para roupa.

Lembro-me essa mesma moça te passar a mão na tua cabeça na única vez em que nos cruzamos no bafiento quarto do hospital, lembro-me bem que foi esse gesto que despoletou as tuas lágrimas e fez verter toda a amargura que acumularas inconscientemente, e que fez sair as palavras sentidas que lhe dirigiste, em que tentaste suprir a falta que lhe impuseste durante anos, num único momento, sem saberes que esse momento amenizaria, sim, o passado, mas não o apagaria.

Lembro-me de me pedires para destruir todas as cartas de felicitações que recebeste, todos os diplomas de mérito, todas as ordens de reconhecimento, e até para deitar fora alguns prémios que receberas, por ser uma forma de tu exprimires e acalmares essa revolta que explodia em ti e te fazia sentir culpado, uma forma de me mostrares, sem palavra dizeres, que reconhecias o teu erro e que me davas razão. Sabes bem que a preferia não ter tido e que tivesses estado presente na tua vida e na vida da tua família de outra forma.

Lembro-me dos pedidos finais que me fizeste, e que prometi guardar segredo, mas te garanto que os cumpri e cumprirei. E o último abraço que te dei ficará gravado em mim, não só pela memória de teu corpo frágil e agonizante, mas pelo teu olhar que misturava súplica e gratidão em simultâneo.

E, antes que me esqueça, eles estão todos bem. Sentem a tua falta, ainda que mitigada pela tua tão presente ausência em vida. Isso não mudou com a tua morte. Apenas sabem que não voltas mais. O mais velho já casou. E nisso, o teu desejo que ele não cometesse os mesmos erros que tu, parece estar a ser satisfeito. Ela mudou de emprego e também está bem. Quanto à tua mulher, bem, é quem mais sofre, mas isso mudará em breve. Se aqui estivesses partilharias da mesma alegria, porque irias ser avô dentro de alguns meses.

Um abraço e até sempre.

segunda-feira, setembro 18, 2006

A Falta da Falta da Falta (V)

Contudo, o mais inesperado aconteceu após um encontro, um faustoso encontro, realizado numa bela cidade, e em que ficou hospedada num luxuoso hotel, a expensas da organização.
Tudo correra bem. A sua palestra fora um sucesso. Mas a do colega que a antecedera não correra muito bem. Ele estava extremamente agitado e nervoso, apesar de deter uma assinalável experiência em situações do género. E, quando terminou, saiu a toda a pressa. Aquando do fim da sua própria participação, perguntou a uma amiga que a acompanhara, se tinha noção da razão pelo qual o colega se apresentara assim. A amiga disse-lhe que correra um burburinho pela sala, comentando que o filho mais velho dele tinha sido atropelado e estava bastante mal no hospital.
“Coitado! Pelo disso estou eu livre”

No hotel, antes de dormir, sentiu um peso no peito, uma estranha agonia. Imagens confusas povoaram-lhe a mente. Aquele colega tinha o filho no hospital, e fora a correr, de volta ao seu país de origem, para ir ter com ele. Ela não tinha filhos ou marido para quem correr, a quem dar um abraço apertado. Já não estava em idade para uma gravidez que não fosse de risco, já não se poderia dar a esse luxo, nem tinha vida para isso. Bem ou mal, o seu sucesso profissional assumira o foco central da sua existência. Como lhe fora dito um dia. Por ele. Ele... ele era mesmo estranho. Ele havia lhe dito que ela se lembraria muitas vezes de suas frases, opiniões, sentenças, conselhos, alertas, avisos. Lembrava, claro que lembrava. Lembrava com muita força e naquele momento apenas queria estar aconchegada a ele, num outro lugar, numa casa, em que no quarto ao lado dormissem crianças. As crianças... chegou a cogitar nomes para elas, pelo menos falara-lhe nisso...

Porquê? Porquê esta angústia, porque motivo parecia que ele nunca tinha ido embora, parecia que estava sempre à sua volta? Porque se lembrara dele neste momento de dor? Exacto... dor... a dor da solidão... quem lhe dera largar tudo...

“Não, preciso é de umas boas férias. Aquelas com que ando a sonhar há já muito tempo!”
E, se assim pensou, melhor o fez. Fez uma excursão pelo Oriente, com todo o luxo que o dinheiro pudesse pagar. Conheceu gente, foi galanteada por alguns homens de nível, visitou lugares exóticos, foi a bares, festas e outros eventos que adornam os pacotes turísticos. Riu, gargalhou, dançou, passeou.
De volta ao seu país de acolhimento, de volta ao local onde levava a cabo o seu projecto, teve uma crise de choro que a fez gritar. Não percebia, o que se estaria a passar?

Ano e meio se passou desde então e voltou a Portugal. Com o seu nome reconhecido por toda a comunidade profissional. Com a fama granjeada, com o seu prestígio, muita gente se aproximou dela. A solidão que sentira ao longo dos últimos anos tendia a dissipar-se. Fez novas amizades, mas depressa se deu conta que as novas amizades se desfaziam bem mais depressa que as velhas, tão logo as pessoas deixassem de ter motivos de interesse para as outras.

Mas singrava e ganhava dinheiro. Alguns dos antigos amigos retomaram o contacto, ainda que esporádico. Outros agiam de forma seca ou indiferente. Não percebia.

A cama, à noite, parecia-lhe sempre enorme.

A casa, ao chegar, parecia sempre vazia.

Ao longo de todo este tempo, sempre se apoiara profissionalmente em alguém que considerava o seu mentor. Alguém que conhecera há muitos anos e que a impulsionara a crescer, a ter ambição e querer ir longe. Trocavam e-mails regularmente, e até levaram a cabo alguns projectos em parceria, incluindo dois livros. Um dia desabafou com ele, escreveu uma carta electrónica em que falou do peso que carregava e que não sabia explicar. A resposta que ele lhe deu não a afagou, apenas lhe causou algumas cefaleias. “Minha querida, não tens razão de queixa, pois és uma mulher realizada, conseguiste ascender até onde pretendias, tens a admiração e a inveja dos teus pares. O que sentes são fraquezas momentâneas, talvez motivadas por algum cansaço, mas certamente encontrarás o tónus que te permitirá fortificar o teu espírito. Que tal um novo projecto? Estou a pensar em retomar aquele tema da...”
Queria ela, naquele momento, lá saber do que ele pensava em retomar. Ela queria um carinho, um afago, sob a forma de compreensão. Queria que ele lhe dissesse que nem tudo eram rosas, que havia uma claustrofóbica incompletude naquela vida, a vida em que até o tempo livre, estranhamente, lhe soava a uma prisão.

(Continua)

sábado, setembro 16, 2006

A Falta da Falta da Falta (IV)

Esperou, é certo, mas a espera nada gerou além do desencanto. Não tinha coragem de voltar a ligar e não recebera qualquer chamada de retorno. Teve vontade de se insultar, teve vontade de voltar atrás e não ceder à tentação de marcar o número que estava esculpido com mais força pelo cinzel dos acontecimentos do que aquilo que se apercebia.

Após um sono agitado, levantou-se com aquela certeza que caracterizava a sua personalidade. A certeza que apenas fora um gesto de penosa fraqueza num momento de solidão. Nada tinha a recear. O sucesso vislumbrava-se a passos largos na sua carreira. Estava a caminhar para o topo. Decidiu encetar um projecto que alimentava em si há alguns anos: passar uma temporada a trabalhar no exterior, tentando ascender ainda mais profissionalmente, elevar-se a um ponto em que poucos chegam e alcandorar-se. Sim, era feliz no que fazia e quanto melhor fosse, mais feliz se tornaria. Tinha a certeza...

Não demorou muito tempo a ser aceite onde pretendia. Uma instituição de renome, onde ficaria por quatro anos, onde contactaria com outra gente, outras mentalidades, novas formas de trabalhar, novos processos. E tudo enriqueceria o seu currículo, e toda a aquisição de conhecimentos ser-lhe-ia indispensável, de acordo com o seu ponto de vista, para a prossecução da sua vida futura.

Os primeiros tempos foram de adaptação linguística e geográfica; seguiu-se o deslumbramento com o trabalho, o entusiasmo por se sentir num processo de integração nada doloroso, e pertencer a uma elite, uma restrita e prestigiada elite. A falta de casa era menor do que pensara inicialmente. Assim se passaram largos meses, em telefonemas e e-mails para a família e amigos, mesmo uma visita de uma semana para os reencontrar. Conheceu alguém no país de acolhimento. Iniciou outra relação, mais promissora ainda que a anterior. Alguém que exercia a mesma profissão, certamente era alguém com quem seria fácil discutir o dia a dia. E foi. Até a monotonia tomar conta de ambos. A separação gerou alguns incómodos. O trabalharem no mesmo local, não ajudava. Entretanto, sucediam-se os convites para participar em encontros e palestras, algo que gerava um enorme contentamento dentro de si. De cada vez que um trabalho seu era admitido em alguma revista, rejubilava e extasiava. Espraiava a sua alegria, telefonando para as suas amizades mais próximas.

Foi precisamente com uma amizade que teve um desgosto. Um desgosto para o qual o seu instinto havia avisado anos atrás. Um dia, ao telefonar a uma amiga para lhe dar conta de como estava feliz ao ter sido convidada para integrar um comité internacional da especialidade a que se dedicara, ouviu, num tom cortante, “ah, sim? Que bom. Fico feliz por ti, mas agora tenho que desligar. Que te corra bem.”
De início, nem deu bem conta. Ao fim de uma hora, apercebeu-se que algo não tinha batido certo. “Lá estaria mal disposta, com algum problema.” Ligou no dia seguinte a perguntar se estava tudo bem. A sua amiga disse que sim, mas que tinha que desligar. Perguntou-lhe: “O que se passa? Estás chateada comigo por alguma razão?”. Teve como sinistra resposta: “Cansei-me da tua fanfarronice. Cansei-me de anos a te ouvir dizer que fazias isto e mais aquilo, que eras um caso de sucesso como poucos. Aos poucos, foste te afastando de todos e vivendo apenas para ti. Não te desejo mal. Mas não acho que tenhamos grande coisa para dizermos uma à outra.” E com isto, desligou.

Sentiu-se atordoada e chorou. E foi então que uma grande dor tomou conta de si. Foi então que ele lhe voltou à mente. Sentiu necessidade do seu abraço, mas ele não estava ali. Talvez nem em lugar nenhum. Onde? Onde estaria? O que faria? O que diria ele agora do seu sucesso?
Quanto à sua amiga, seria inveja, certamente. Inveja.


(continua)

quinta-feira, setembro 14, 2006

A Falta da falta da falta (III)

Verdade seja dita, numa fase inicial, tudo se assemelhou a um alívio. O retorno a um tipo de vida e postura tão bem conhecida e entranhada, permitiu-lhe estabelecer algumas pontes de segurança dentro de si. Foi possível reencontrar algumas pessoas e não ter aquela espécie de consciência sempre presente. Entendeu estar a tomar o caminho correcto, sem qualquer sombra de dúvidas. As coisas tinham sido dolorosas e apenas se lhe afigurava como fonte de plausibilidade o término eterno.

Assim, resolveu se ir distanciando lentamente, afrouxando o ritmo dos telefonemas, sabendo que do outro lado o silêncio se instalaria. Não tinha força nem feitio para efectuar o corte de uma só vez. Mal por mal, por muito estranha que fosse a criatura que partilhara a sua vida durante aquele período de tempo, era uma criatura que sabia ouvir e opinar, que não dizia apenas “hum, hum”, quando lhe contava algo ou desabafava algum problema. Não tinham apenas partilhado lençóis para dividir o sono e entregar os corpos. Tinha também procedido à entrega de si, e sabia que podia confiar nesse ser de quem agora desejava o alívio da ausência.

“O que não faltam são outras coisas no mundo. E há, para mim, coisas bem mais importantes”. Esta espécie de mnemónica era repetida diariamente, por si e para si. Os dias iam passando sorridentes logo após a separação. Muitos afazeres, muitas solicitações, pessoas divertidas com quem falar, reencontrar alguns contactos perdidos, visitar amizades. Durante algum tempo, tudo isso fez todo o sentido do mundo e foi preenchendo os dias, que pareciam estar tão cheios. A presença daquela pessoa em si parecia esfumar-se. Já não falavam com frequência. Raramente falavam, aliás. Para quê? Além das diferenças, achava que qualquer um estaria melhor sem o outro. De longe a longe, sentia uma certa falta, mas logo afastava essa ideia da mente.

Decidiu se embrenhar a fundo na profissão. O reconhecimento pelos seus pares era algo primordial para si. Afeiçoou-se por outra pessoa e encetou uma relação. Essa pessoa tinha uma imensidão de afinidades consigo que a outra não tinha. E via a vida de uma forma parecida com a sua. Agora sim, sorria e vivia a vida de forma leve. Nunca se sentira muito à vontade em encetar conversas densas e profundas. Já não mais. Isso ficara completamente para trás. Ou quase. De quando em quando, vinha-lhe a imagem daquela pessoa à mente. Mesmo com outro alguém ao lado. Seria uma questão de tempo, com certeza.

Tempo que foi passando, os dias sucediam-se de forma gulosa. A sua relação começou a sofrer um natural desgaste, mas como ambos preferiam evitar as discussões, os problemas pareciam que não existiam. Mas estes foram se fazendo notar cada vez mais, até que se tornou impossível não efectuar uma separação. Mais uma relação terminara, e mais uma vez, achava que não sabia exactamente porquê. Em que poderia falhar? O que faria de errado? Onde andaria… não, era melhor nem pensar nisso. Já há algum tempo que não falavam e sentia-se bem assim.

Nessa noite, em seu quarto, em sua cama, era aquele ser tão diferente de si que lhe vinha à mente quando pegava no telemóvel para falar com alguém. Claro que não o fez. Varreu outros nomes da lista telefónica e evitou dar vazão aquele ardor, aquela vontade de desabafar com esse estranho ser, que se inculcara em si mais do que algum dia sonhara. Caramba, saberia bem ouvir aquela voz, sentir o conforto daquelas palavras que, mesmo duras, eram certeiras. E como agora sentia que eram certeiras…

Aguentou mais uns dias, mas acabou por ceder à tentação e marcar os algarismos que formavam o número que tantas vezes ligara no passado. Chamou, mas ninguém atendeu. Não tinha atendedor de chamadas. Não podia deixar recado. Pensou em deixar uma mensagem escrita, mas reflectiu e pensou que não necessitaria de fazer mais nada. Obteria, por certo, uma chamada de retorno. E se não obtivesse? E se não tivesse resposta? Oh, não deveria ter ligado. E agora? Agora apenas poderia tentar de novo ou fingir que não o tinha feito. Se lhe ligassem de volta, o que diria? Que se enganara no número? Que ligou por ligar? Apenas para saber se estava tudo bem? A ansiedade crescia. E, sem se aperceber, em poucos segundos, tudo o que julgava morto e enterrado, viveu em si outra vez

(Continua)

sexta-feira, setembro 08, 2006

Negro Fado

No momento em que escrevo sinto tocar-me o gelatinoso espernear da depressão. Uma certa tristeza que não deixa o meu dia a dia incólume e, que, inversamente, me faz senti-lo como um arrastar dilacerante e em que o entusiasmo se foi deixando substituir pelo marasmo. Creio que, acima de tudo, é patente em mim uma enorme repulsa pela vida nos nossos dias, e essa repulsa que me leva a escrever e a vomitar esta torrente de observações, críticas, reparos, sugestões e opiniões.
Não nego que preferia viver em outras épocas, talvez uma época (e um lugar), em que a palavra “Honra” tivesse um significado muito mais profundo do que aquele que possui nos nossos dias. O facto de estarmos vergados ao poder ridículo e diáfano do dinheiro, de permitirmos que as ilusões da aparência nos façam crer que somos mais evoluídos porque generalizamos os perfumes, a moda, os telemóveis e os cartões de crédito, despertam em mim um misto de angústia, sufoco e terror, pela alarvidade cretinizadora em que coabitamos.

O nosso sorriso é mais declarado (e falso) perante alguém que entendemos ser importante. Confundimos liberdade com libertinagem. Parte do feminismo não é mais que um egocentrismo arrogante e presunçoso. As tertúlias transformaram-se em bebedeiras. A vida académica não é mais, muitas vezes, que álcool, drogas, humilhações e sexo barato e entorpecido. A ascensão na carreira (algo que preocupa imenso os lamentáveis seres humanos), faz-se à custa do pisotear princípios éticos e valores respeitáveis. Destruímos o ambiente numa voracidade consumista que nos é incitada desde tenra idade, e que adoptamos garbosamente. Assimilamos a solidão e confundimos confraternização com luxúria. Preocupamo-nos com a utilidade que as pessoas podem ter para nós e não com aquilo que elas são e necessitam. Adormecemos nossas consciências ou compramo-las através de donativos ou voluntariados enxabidos. Substituímos o livro pela consola e pela TV, trocamos a ópera e as composições de diferentes etnias por batidas electrónicas ritmantes e compulsivas. Tentamos doentiamente prolongar a nossa existência para além do tolerável.

Talvez o mais negro consista em que o fazemos de forma consciente e com o altivo convencimento que caminhamos no sentido correcto. Incitamos os nossos sucessores a fazerem pior que nós, no doce sonho que eles estão, ao invés, a fazer ainda melhor. Porque equivocamos as nossas definições, ao assimilar como sinónimos os conceitos de “mais” e “melhor”. Mais do que é mau apenas pode ser pior.

No entanto, temos que nos deixar de lamúrias e viver sem ironia acintosa. Festejemos as festas que todos celebram, bebamos até cair para o lado, para esquecer, ou melhor, para que, por momentos, não nos lembremos do que nos atormenta. Passemos onze meses a sonhar com o mês de férias, na falsa convicção que esse mês compensa a espera a que nos sujeitamos na vaga esperança de nele concentramos, como um pó milagroso, ou sumo foleiro de hipermercado, a felicidade que nos passa bem ao lado, em quantos de nós, durante uma vida.
E gargalhemos, rejubilemos com as pequenas insignificâncias às quais concedemos o estatuto de deuses. Glorifiquemos os inertes adereços que nos enlaçam a vida com a força de um garrote. Brindemos, brindemos ao facto de podermos consumir um pouco mais a cada dia, esgotando o tempo que nos escorre pelos poros e que não permite que qualquer mão o agarre, pois não respeita a sujeição ao tacto. Vibremos com as mesquinhas vitórias que nos levam a nenhures e que, em todos nós, culminarão com o inevitável mergulhar nas trevas que tanto tentamos afastar da nossa existência.

É... dar as mãos é apenas uma forma de não estrangular o pescoço alheio...

quinta-feira, setembro 07, 2006

Quem diria..?

Torna-se impressionante o encarceramento a que algumas pessoas se votam, ainda que contactemos com ele na regular cadência dos dias.
Com efeito, é frequente hoje, talvez como nunca, mas creio que não como sempre, ouvir os queixumes e lamentações de seres humanos que se dizem sentir sós. Não tenho grandes dúvidas que muitos se sintam, de facto, sós. Tenho é dúvidas se eles se aperceberão que, em muitos casos, são eles que criam as próprias condições da sua solidão. Muitos de nós têm a tendência de procurar os outros em algumas situações tipificadas. Sobretudo quando se sentem em baixo e em ocasiões festivas. Quanto a estas últimas, o seu carácter de fatuidade não é propenso a que exprima mais centelhas de prosa a divagar sobre o assunto, excepto aquando de directa conexão com o tema versado. Em relação às situações em que as pessoas se sentem em baixo, é normal que procurem outras para desabafar seus tormentos internos e externos e para recolher apoio.

Sucede que a mesma pessoa que procura outrém quando se sente atacada pela vida, é aquela que se esquece desse outrém quando a vida lhe sorri. Quantos de nós não conhecemos pessoas que, se estão na mó de baixo, querem a nossa companhia, mas, nos seus dias bons, preterem-nos em favor de outras companhias. Há muita gente que se inebria a si mesma, que se deleita com as suas pequenezas, e que nesses momentos, despreza a mesma pessoa que anteriormente quisera a seu lado para lhe aparar as lágrimas. Claro que a pessoa procurada/desprezada (consoante os momentos) sente. E começa a afastar-se, sem que a outra perceba porquê. Aliás, o que há para perceber, de acordo com o seu ponto de vista? É tudo tão natural... ontem estava em lágrimas, precisava da tua companhia, do teu ombro, hoje estou bem, preciso é que não me chateies muito.

Esta perspectiva é utilitarista e apenas não a designo de hedionda, porque muita gente faz isto de forma inconsciente, semi-triturada pelo espírito egoísta de nossos dias. Há gente tão orgulhosa de si própria em determinados momentos, que nem se lembra que para o resto do mundo, esse orgulho pode ser um completo absurdo.
Mas um dia, as pessoas a quem se recorre não estão lá, fartas de se sentirem usadas, manipuladas, ou apenas procuradas quando um outro alguém precisa. As pessoas vão, e se afastam, a maioria das vezes sem nada dizer. E o orgulhoso de suas minudências principia a já não ter ombros. Chora encostado a uma parede ou deitado numa cama. É, de facto, digno de pena. Apenas pena.

Talvez todos nós façamos isto. Não é bom, mas o pior é tomar consciência e continuar a fazer. Sabemos que a vida aproxima e afasta as pessoas. Isso é uma inevitabilidade. Já não o é quando apenas contamos com as pessoas para quando precisamos e depois as deixamos no seu canto até a nossa próxima necessidade. Pode ser que nessa necessidade, elas já lá não estejam. E que sintamos sua falta. Pode ser que não... que apenas recorramos a outro número da nossa lista e encolhamos os ombros, envoltos na nossa própria cegueira, e mergulhemos na penumbra de prolongarmos o ciclo, adiando a agonia até ao dia em que sintamos a mais profunda solidão, a mais perfurante dor de estarmos verdadeiramente sós.

E, se nem assim formos capazes de nos debruçarmos sobre nossos erros e concluirmos que causamos a nossa própria solidão, então seremos incapazes de dela sair e mereceremos plenamente pegar na pá e cravarmos de torrões de terra a nossa tumba, que tão amargamente arquitectamos e edificamos.

segunda-feira, setembro 04, 2006

Ao Rui

Meu caro amigo,

Espero que o voo te corra de feição, que nenhuma bagagem se transvie, e que rapidamente te adaptes aos costumes e ao local onde te diriges além-mar.

Serão cinco meses e meio em que a tua ausência será sentida. Será sentida nos pequenos-almoços de domingo, em que nos levantávamos cedo, apenas pelo gozo de ir comer, conversar, ler jornais e, muitas vezes, estudar a seguir. Tivemos longas e proveitosas conversas sobre uma panóplia de temas que não é fundamental descrever. De todas as estações do ano, aquela em que nos encontrávamos um menor número de vezes era o Verão, sobretudo após os exames de Julho. De resto, quantas e quantas vezes, com chuva, sol, nevoeiro, calor, frio, vento, íamos acordando ao sabor de uma torrada e uma meia de leite, à qual tu acrescentavas o teu usual bom humor e eu o meu olhar sardónico sobre a vida.
Será sentida nas aulas de alemão e nos trajectos posteriores. As piadinhas, a descoberta de uma nova língua, a integração numa turma, sensações diferentes. Foi onde os nossos papéis se alteraram. Já tinhas sido meu pupilo em três anos lectivos, passaste a ser meu colega de turma durante um. Seriam dois, não fosse esta viagem.
Será sentida nas tardes em que nos encontrávamos, nos almoços com os cretinos de mecânica, nas francesinhas que tanto gostavas.

Percebo que para muitos fosse uma tentação dizer para não te ires, a tua família à cabeça.

Contudo, talvez eu tenha tido o privilégio de ir acompanhando uma hipótese remota, que se transformou numa ideia plausível e que está em rumo de se tornar um sonho concretizado. Sim, falávamos de Florianópolis (e do Brasil de uma forma mais abrangente), antes mesmo de nos passar pela mente ir a Praga. Tendo em conta que fomos a Praga há já um ano e quatro meses, já muita vida nos sorveu pelo caminho.

Pelo que te digo que ainda bem que foste. Sei o quanto o Brasil é importante para ti, o quanto desejavas lá ir. Mesmo que possa não corresponder às tuas expectativas, era algo que tinhas que fazer. Em parte, vivencio um pouco a tua ida, pois não só te acompanhei até ao momento final, em que hoje te despediste no aeroporto, como também é um lugar que muito me diz.
São cinco meses e meio, que para ti, no geral, passarão a voar. São cinco meses e meio sem ti, meu caro amigo. Esperamos cá estar no teu retorno, para te ouvir e ver. Te ver contar histórias e peripécias, te ouvir falar com uma espécie de suspiro a sibilar por entre as palavras. Um suspiro de vida.

Até lá, ou até antes, segundo espero, um abraço valente, e tem a convicção que é um prazer ter-te como amigo. És das pessoas mais puras e com melhor coração que eu conheço. Vai dar aos brasileiros a alegria de te terem em seu seio por uns tempos.
Eles sentirão tua falta quando voltares.
Nós sentimos tua falta agora que partiste.